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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Jorge Luís Matos – As Viagens de Colombo e a Náutica Portuguesa de Quinhentos

Congreso Internacional

Cristóbal Colón 1506-2006.

Historia y Leyenda

Palos de la Frontera

2006

Pp. 27-50

As viagens de Colombo

e a náutica portuguesa de quinhentos


JORGE LUÍS MATOS
Escola Naval, Lisboa

Diz-nos a mais rigorosa e atenta historiografia tradicional que Cristóvão Colombo chegou a Portugal por via de um trágico acaso, que resultou num naufrágio em que miraculosamente salvou a vida nadando até à costa algar­via, por perto do Cabo S. Vicente. Fundamenta-se esta ideia no que nos des­creve Las Casas1 e que, aliás, repete o que consta na História del Almirante escrita pelo próprio filho, Hernando Colón. “el almirante navegava en com­pañia del mencionado Colón el Mozo, cosa que hizo durante mucho tiem­po”,2, encontrando quatro navios de Florença que decidiram atacar. O combate foi duro e prolongado, de que resultou um incêndio e um naufrágio, de que Colombo se salvou a nadar até à costa, descansando, de vez em quan­do, agarrado a um remo. E este é apenas mais um dos muitos episódios mis­teriosos que envolvem a vida do descobridor da América. Vários historiadores chamaram a atenção para a impossibilidade de que tivesse navegado com o corsário Colón el Mozo, que se sabe ter actuado muito depois da data apontada para estes eventos, e os factos narrados – a batalha, o incêndio e o próprio nome do corsário – sugerem um outro corsário, con­hecido por Colombo el Viejo, na altura ao serviço do rei de França. Alonso de Palencia e Diego Valera referem um combate que teve lugar em 13 de Agosto de 1576 e Rui de Pina fala do mesmo corsário3, referindo que se encontrou com Afonso V em Lagos – quando este partia ao encontro de Luís XI, pedindo-lhe apoio, na sequência da batalha do Toro – e concertou de “andar d’armada em seu favor [...] Os quaes todos logo de hy a poucos dias [...] afferaram quatro carraças de Genoa, e sendo já per força entradas em huma, se acendeo fogo em hum barril de pólvora...”. A história parece ser coincidente em várias fontes, apenas surgindo nova polémica quanto ao lugar que Colombo ocupava na contenda. Pareceria evidente que viria num dos navios genoveses, o que se confirmaria pelo socorro ou pela ligação que esta­beleceu em Lisboa com as casas comerciais de Spínola e Di Negro, mas pode acontecer que andasse na própria armada do corsário francês há alguns anos, o que justificaria o seu saber náutico e muitas outras observações que surgem avulsas e, nalguns casos, inexplicáveis nas suas notas e nas afirmações de Hernando e Las Casas4. Em todo o caso, não é meu propósito aprofundar aqui essa questão –que, além do mais, se me afigura bastante turva– aceitan­do apenas o facto de que em 1476 se instalou em Portugal, onde terá chega­do a nado. E por alguma razão aqui ficou.

(D. João II)

Adivinha-se no Portugal de 1476 o despontar do plano joanino da Índia que tinha uma face visível na persistência das navegações ao Golfo da Guiné e na tentativa de continuar as explorações cada vez mais para sul. A guerra com Castela, encetada por D. Afonso V, com o intuito de colocar no trono vizinho a sua sobrinha Dª Joana, sofrera um revés importante na batalha do Toro que, por si só, poderia não ter sido decisiva. O monarca português ten­tava, por todos os meios fazer uma aliança com Luís XI de França e buscava os apoios necessários para continuar o conflito. Contudo, surge na altura um factor que me parece ter sido decisivo para o desenrolar dos acontecimentos. As explorações da Guiné davam os seus frutos e constituíam um monopólio quase absoluto para as caravelas portuguesas, mas a guerra com Castela tinha criado um grave problema a esse tráfico valioso: a aproximação a Lisboa tor­nara-se perigosa pela multiplicação de ataques corsários; e, pior do que isso, surgiam navios castelhanos nas costas da Guiné, ameaçando descobrir os caminhos de uma fonte que importava preservar. Estes foram, talvez os prin­cipais factores tidos em conta pelo príncipe D. João (herdeiro do trono) que formalmente tomara conta dos negócios ultramarinos em 1471, mas que só depois do Toro a eles se dedicava de corpo e alma, olhando-os como um desígnio nacional de primeiríssima ordem e a preservar a todo o custo.

É curioso notar, sobre este assunto, a ascensão da figura de Fernão Gomes, a quem o rei tinha arrendado, em 1469, e por cinco anos, a exploração dos produtos da costa africana (com excepção do comércio de Arguim e da terra em frente às ilhas de Cabo Verde), mediante o pagamento de uma renda anual de 200 000 réis e o compromisso de explorar 100 léguas de costa por ano. Fernão Gomes cumpriu escrupulosamente o contrato (que viu pro­longado por mais um ano) e foi nobilitado posteriormente, passando a inte­grar o Conselho Régio em 1478. Curiosamente, numa altura em que o governo estava na mão do Príncipe, na qualidade de regente. E realço este pormenor para salientar a importância que D. João deu às viagens marítimas, uma questão preterida pelo seu pai como secundária, nomeadamente, em relação às campanhas e conquistas em Marrocos. Neste caso específico, a nobilitação de Fernão Gomes e a sua integração no conselho régio, associa­da à ascensão do Príncipe, quer nos assuntos africanos quer no governo do próprio país, são alguns dos factos que se podem relacionar com um cres­cente interesse pela exploração ultramarina, agora ameaçada pela intro­missão castelhana na sequência da guerra de sucessão. Quero com isto dizer que, o período que vai de 1476 (após o Toro) até à assinatura do Tratado das Alcáçovas, em 1479 (ratificado em Toledo em 1480), é um período de mudança na política portuguesa. E é inevitável que isso não tivesse uma expressão visível no movimento do porto de Lisboa, fosse pelo crescente número de navios, fosse pelo carácter exótico das mercadorias e gentes, fosse ainda (sobretudo) pelas conversas sobre o “mundo por descobrir”. A cidade, o porto e a corte, eram certamente paraísos de aventureiros, discutindo cada um ao nível da sua própria visão da descoberta. Havia homens simples do mar que procuravam impressionar os incautos com histórias mirabolantes de viagens, terras nunca vistas e ilhas encantadas; haveria homens de negócios que contactavam com mercadorias impensáveis alguns anos antes, e que rea­lizavam negócios fabulosos; mas circulavam também cosmógrafos, cartógra­fos, astrólogos, fabricantes de instrumentos, homens que sabiam latim e grego e que conheciam relatos e descrições fantásticas, gente que vendia li­vros, pessoas que frequentavam a corte e que, no rebuliço das tabernas, fala­va dos seus sonhos sem limites. E foi esta Lisboa que Colombo viu (pela primeira vez?) e que não pode ter deixado de o impressionar. A Ribeira, o Tejo, a Casa da Mina, as ruas de mercadores, as lojas de livros, as oficinas de cartógrafos e o convívio com eruditos clérigos ou laicos compuseram a “babilónica universidade” onde estudou, pensou e desenvolveu a ideia de alcançar as Índias, navegando num sentido diferente daquele que seguiam as habituais viagens portuguesas.



Deve dizer-se que na sua essência o projecto colombino não era uma novidade absoluta, encontrando múltiplas inspirações em viagens ocasionais ou fantásticas, que decorreram (ou de que se falou) ao longo do século XV, e que faziam supor a existência de ilhas e terras a ocidente. Terras essas que aparecem na cartografia da época. O caso mais antigo –tanto quanto sei– está na carta atribuída a Zuane Pizzigano e estudada por Armando Cortesão, onde surge um grupo de ilhas (antilia e satanases são as de dimensões mais signi­ficativas) que o autor coloca no Golfo do México, pretendendo, dessa forma, documentar viagens portuguesas a essas longínquas paragens antes de 1424, data da feitura do mapa. Não importa agora qualificar a sua argumentação, mas apenas salientar o mito, a ideia e a conversa suscitada pelo assunto, que, pelos vistos, não se circunscrevia à Península Ibérica. Aliás, se quisermos ser mais rigorosos na consideração de relatos de viagens aos espaços oceânicos do Atlântico ocidental, mesmo passando por cima das fantásticas hipóteses de fenícios e gregos, que ali podem ter ido parar ao sabor das correntes (para não mais voltar), não devemos ignorar a Descrição da África e de Espanha feita por Edrisi, no século XII, onde nos diz: “Foi de Lisboa que partiram os aventureiros, para a expedição que tinha como objectivo saber o que encerra o Oceano e quais são os seus limites...”. Uma expressão que encerra toda a magia do oceano ocidental e a nostalgia de quem olha o sol poente e sente crescer o desejo de ir atrás dele, num impulso de negação da noite. E não fal­taram a Colombo outras descrições como esta. Uma delas está relatada pelo filho, Hernando Colóm, e por Las Casas referindo uma viagem de Diogo Teive, que “ocorrió cuarenta años antes de que se descubriesen las Indias”5, culminando com a descoberta das ilhas das Flores e do Corvo, as mais oci­dentais do Arquipélago dos Açores. Mas há mais referências na História da Expansão Portuguesa, até aos anos oitenta do século XV, e que não passaram despercebidas a Colombo. Em 1462, João Vogado requereu a D. Afonso V os direitos de donatário de umas ilhas que tinha avistado numa outra viagem, propondo-se lá voltar. Fernão Rodrigues do Arco, Fernão Dulmo, João Afonso do Estreito, foram outros tantos a quem foram prometidas benesses sobre terras a descobrir, cumprindo, aliás, um ritual que servia os intentos do rei, estimulando iniciativas, sem despender nada da sua própria fazenda.

Diremos, no entanto, que em nenhum destes exemplos se identificou as (imaginárias) terras ocidentais como sendo a Índia a que procurava chegar D. João II ou D. Manuel, e que Colombo dizia ser muito mais fácil de alcançar (mais perto) seguindo para ocidente. Entre um caso e outro parece-me haver uma diferença qualitativa substancial que –no caso do navegador italiano– implicava um raciocínio sobre a cosmografia clássica e obrigava a um con­hecimento (mesmo que erróneo) de coisas que não estavam ao alcance dos comuns marinheiros sonhadores. Alguns anos depois de estar instalado em Portugal, tendo casado com Filipa Moniz, filha do primeiro capitão donatá­rio de Porto Santo, o jovem corsário/comerciante genovês propôs ao rei D. João encontrar o caminho marítimo para a Índia, navegando na direcção do ocidente, onde esperava encontrar as ilhas de Cipango (Japão) e o grande império do Cataio (China), a partir de onde alcançaria a Índia, tal como o fizera Marco Pólo cerca de dois séculos antes. Fácil será de entender que a proposta parecia aliciante, uma vez que a exploração da costa africana, a sul do Equador, era trabalhosa, os navios lutavam contra correntes marítimas adversas, e não era possível saber-se com absoluta certeza se havia, efectiva­mente, uma passagem navegável para o Oceano Índico. Além disso, pelos cálculos de Colombo, a diferença de longitudes entre a Península Ibérica e a Índia, contada para ocidente, era menor do que sendo contada para oriente. A proposta tinha portanto uma componente de natureza científica que impli­cava uma compreensão geométrica da esfera terrestre, inacessível ao navega­dor ou comerciante comum. Ou seja, a par do ambiente próprio de um porto onde se cruzavam navios vindos de todas as partes, e onde viviam homens que tinham, efectivamente, avistado novas terras e novos mares –colocando nas suas conversas algo mais do que aquilo que se diria em qualquer porto do Mediterrâneo ou da Europa do Norte– Cristóvão Colombo tinha colhido em Lisboa um outro saber que não era acessível a toda a gente sobre o qual, pela certa, já trazia alguma preparação. Nas viagens que efectuara como corsário ou mercador e nas longas estadias que a vida do mar por vezes proporciona­va, tivera oportunidade de contactar com quem sabia latim, e lhe fornecera alguns rudimentos de uma língua, que nunca escreveu com o requinte e a elegância de Cícero, mas que podia ler e entender. Sobretudo, podia servir-se dela para aprender coisas, o que foi muito importante. Provavelmente, teve contacto com algumas das mais notáveis obras de geografia e cosmografia, quer da antiguidade, quer de tempos mais recentes. E com estes instrumen­tos foi construindo um saber que lhe permitia acompanhar algumas das espe­culações geográficas da época. Pode discutir-se se o adquiriu em Lisboa ou se já lhe vinha de uma juventude cujos pormenores desconhecemos, mas não creio que isso seja a questão mais importante a considerar. Como todos os espíritos dotados da ansiosa curiosidade que permite chegar ao saber, é provável que a sua aprendizagem tivesse sido contínua, com muita leitura e muita discussão especulativa. E fê-lo sempre com quem estava ao nível dos seus conhecimentos, não lhe faltando interlocutores em Itália ou em Lisboa, como não lhe faltaram depois em La Rábida ou em Sevilha.


Um caso, no entanto, importa recordar, porque teve uma particular importância na definição do seu ousado plano marítimo: o conhecimento que teve de uma carta e de um mapa elaborados por um matemático e cosmógra­fo florentino chamado Paolo del Pozzo Toscanelli, enviados ao português Fernando Martins, na altura cónego da Sé de Lisboa e conselheiro do rei D. Afonso V. Como quase tudo o que diz respeito a Colombo, também este caso está envolto em névoas e suposições que resultam do desaparecimento dos documentos originais e de posteriores manipulações de toda a ordem. Mas alguns dos factos podem ter-se como certos, parecendo incontestável que esta carta teve uma influência determinante na estruturação do plano colombino. Em 1871, Henry Harrisse encontrou dentro de um livro que pertencera à biblioteca de Colombo a cópia de uma carta que lhe escrevera o matemático florentino6. Aparentemente trata-se da resposta a uma outra que lhe enviara o almirante, e do texto consta uma breve explicação da sua teoria sobre a estreita dimensão do Oceano Atlântico e a proximidade das terras visitadas por Marco Pólo. Como anexo, envia-lhe ainda uma cópia do escrevera ao cónego lisboeta em 1471, na altura, com o intuito de que fosse apresentado ao rei de Portugal um projecto de viagem até à Ásia, seguindo na direcção do Ocidente. Segundo o texto, as explicações eram ainda complementadas com um mapa (desaparecido) que evidenciava a sua teoria, e mostrava como as costas da China e do Japão estavam ao alcance de qualquer navio, em meia dúzia de dias. Ao que parece, Colombo soube da correspondência entre o prelado português e Toscanelli, resolvendo escrever a este último, apresen­tando-lhe as suas próprias ideias e pedindo-lhe o apoio do seu prestígio e autoridade científica. Como resposta recebeu, então, uma carta de que o documento encontrado é (aparentemente) uma transcrição feita pelo próprio Colombo ou por seu irmão Bartolomeu. Parece óbvia a forma como as ideias de Toscanelli caíram no espírito de Colombo como ouro sobre azul, e tudo surge relatado na História de las Indias e em Las Casas, apesar de que con­tinuam a subsistir dúvidas sobre a autenticidade da correspondência entre o florentino e o almirante, dado que os documentos existentes não são originais e apresentam algumas incoerências. No que diz respeito à posição portugue­sa sobre o “caso Toscanelli” –e tendo em conta que a primeira versão da carta datada de 1474– é importante observar que, nesse tempo, a exploração da costa africana estava por alturas do Cabo de Santa Catarina (1º 53’S; 9º 16’E) e que, posteriormente, ocorreram casos diversos de navegadores que se pro­puseram ir descobrir terras a ocidente, requerendo benefícios e privilégios sobre as mesmas. É possível que, durante algum tempo, a coroa portuguesa (leia-se a direcção política do Príncipe D. João) tenha jogado nas duas hipó­teses, até tomar consciência de que a distância para ocidente era muito supe­rior à que afirmava o florentino. Mas parece-me interessante seguir um conjunto de factos que podem ajudar a interpretar algumas das decisões tomadas.

Como já foi dito antes, em 1479, foi assinado o acordo das Alcáçovas, e uma das suas cláusulas estabelecia serem portuguesas todas as terras e ilhas descobertas a sul das Canárias “contra Guinea”, bem como o direito de nave­gação e comércio nessas paragens. Esta cláusula foi conseguida, sem sobra de dúvida, à custa de cedências, nalguns casos bastante humilhantes para D. Afonso V, e indicia uma clara opção no sentido de garantir o domínio dos mares do sul, mesmo que isso apenas tenha a ver com os tratos de comércio, que se revelavam bem lucrativos desde que foram atingidos os deltas do Volta e Níger. Entretanto, em 1481, morre D. Afonso V e sobe ao trono D. João II que, de imediato, manda construir a fortaleza de S. Jorge da Mina (5º 10’N; 1º 15’W). Ainda no ano de 14817, Diogo Cão sai para a sua primeira viagem até à costa angolana e, a partir daí, são notórios os esforços para alcançar o extremo sul da África, em viagens sucessivas (três de Diogo Cão) que cul­minam com a de Bartolomeu Dias, em 1487/88, quando, finalmente, se dobrou o Cabo da Boa Esperança.

Não se sabe qual foi a data exacta em que Colombo apresentou o seu pro­jecto a D. João II, mas supõe-se que terá ocorrido por fins de 1483 ou princí­pios de 1484. Na altura a casa da Mina funcionava em pleno, o ouro da Guiné chegava regularmente a Lisboa, e Diogo Cão já tinha regressado da sua pri­meira viagem, anunciando os contactos com o reino do Congo e preparando­-se para partir de novo para o Hemisfério Austral. Parece-me claro que o soberano português não aceitaria inverter esforços, concedendo a uma inicia­tiva destas mais do que aquilo que aceitava sempre. Os “privilégios do cos­tume”, direi eu. O governo das terras descobertas, com as limitações jurisdicionais habituais, e honras menores de nobilitação, que nunca eram definidas a priori. Não creio que Colombo se contentasse com isso, nem creio que D. João II estivesse disposto a inverter um processo que parecia dar passos seguros, que correspondia às opiniões científicas mais avançadas da época, e que seguia por um caminho onde os portugueses tinham de concen­trar esforços para garantir o domínio efectivo de uma zona que, além do mais, já estava a dar lucro.

Pouco importam, no entanto, as razões ou os argumentos debatidos entre os representantes do rei e o navegador, uma vez que o projecto não foi acei­te nem parece ter merecido a importância de uma referência numa crónica8. O que aqui interessa salientar é a forma como o Cristóvão Colombo, que che­gou a Portugal em 1476, pode ter sido influenciado pelo ambiente de Lisboa para cimentar uma ideia que assumiu a força de uma obsessão. O facto de ouvir falar na existência de terras a ocidente –algumas delas com dimensões tão significativas que poderiam ser um dos países descritos por Marco Pólo– e de ter tomado conhecimento de uma teoria que colocava essas terras a uma distância acessível, numa viagem marítima directa, parece-me ter dado corpo apenas a uma parte do plano colombino. Outros factos com que contactou e que deve ter acompanhado com atenção deram ainda mais força às suas ideias, da mesma forma que a experiência das navegações realizadas naque­la década lhe permitiu resolver alguns problemas náuticos e técnicos com­plexos, que a sua empresa comportava.

Contudo, antes de abordar as questões náuticas propriamente ditas, em que podem relacionar-se decisões tomadas pelo almirante, com práticas e saberes que estão presentes nas navegações portuguesas entre o Golfo da Guiné e Lisboa, parece-me importante falar de uma viagem que efectuou às Ilhas Britânicas, possivelmente em 14779. Em relatos do próprio –registados numa nota à margem dum exemplar da Historia de Pio II10, e no fragmento de uma carta que, em Janeiro de 1495, escreveu aos Reis Católicos– diz o seguinte: “Yo navegué el año de cuatrocientos y setenta y siete, en el mes de Hebrero, ultra Tile isla cien leguas, cuya parte austral dista del equinocial setenta y tres grados, y no sesenta y tres, como algunos dizen...”11. Ou seja, navegou para além da Islândia (a Thule de Pytheas), cerca de 100 léguas, verificando que o mar não estava congelado e que ”avia grandíssimas mareas, tanto que en lagunas partes dos vezes el dia subia veinte y cinco braças”. Já vários autores repararam que a tentativa de corrigir a latitude da costa sul da Islândia de 63º para 73º é um erro inexplicável para quem afirma lá ter esta­do e demonstra saber bem como é que se calcula essa coordenada. E digo que demonstra saber bem como se calcula porque, apesar dos valores errados que, por vezes, surgem nos seus escritos –que nalguns casos tocam o absur­do–, a diligência e segurança com que dirige os navios que comanda mostra que sabe muito bem onde anda e como deve proceder. Estes erros têm, por­tanto, uma origem qualquer que desconheço e sobre a qual não me parece prudente especular. Neste caso, por exemplo, podem resultar apenas de ter recebido a informação de outrem, sem que a tenha verificado in loco. E em abono desta hipótese refiro que a passagem por tão frígidas regiões com difi­culdade poderia ter ocorrido em Fevereiro (como diz o texto), quando os gelos vêm quase até à Islândia12, os temporais são constantes e a as marés, que nalguns locais têm uma amplitude extraordinária, se comparada com o Mediterrâneo, de maneira nenhuma alcançam as 25 braças13. Ponho a hipó­tese de que tenha saído de Portugal em Fevereiro, com destino ao porto de Bristol e tenha passado, eventualmente, por Galway, onde observou que as marés eram muito grandes (?), ouviu histórias dos pescadores que, há muitos anos, iam pescar até às ilhas Feroés e à Islândia, chegando-lhe aos ouvidos uma outra história da mais antiga saga viking, que hoje sabemos ter chegado à Groenlândia ou mesmo até à foz do rio S. Lourenço e Terra Nova14.

Pode ter acontecido que, ao sair de Lisboa, já levasse alguma informação sobre empreendimentos marítimos extraordinários, hoje difíceis de docu­mentar. Existe, por exemplo, um conjunto de informações dispersas, de um modo geral de fundamentação frágil e espalhadas por obras escritas muito a posteriori, que registam relações políticas entre D. Afonso V e o rei da Dinamarca, envolvendo a realização de uma expedição conjunta aos mares da Terra Nova. De tal viagem se tem conhecimento através de um documento publicado em 1909 por Luís Bobé, consistindo numa carta enviada pelo bur­gomestre de Kiel, a 3 de Março de 1551, ao rei Cristiano I da Dinamarca, anunciando que com ela segue um mapa onde está representada uma viagem até às costas da Groenlândia (natural para navegadores dinamarqueses) rea­lizada a mando de seu avô Cristiano I e a pedido do rei de Portugal15. O docu­mento é credível e sustenta a realização da empresa onde participaram portugueses; contudo, não fornece os dados suficientes para que se perceba quem foi e o que aconteceu. De qualquer forma foi assunto conhecido em Portugal (por um núcleo mais ou menos restrito?) e é muito possível que tenha chegado aos ouvidos de Cristóvão Colombo, acompanhando-o na viagem a Bristol e fazendo já parte do seu património onírico. E quando falo do património onírico de alguém que se aproxima de Bristol em 1477, creio não ficar muito longe da verdade ao pensar que seria muito parecido com o de Giovanni Caboto, alguns anos mais tarde16. O projecto deste último, apre­sentado na altura ao rei Henrique VII parece-me semelhante ao que o almi­rante apresentou a D. João II e depois aos Reis Católicos. Apenas com a nuance de pretender partir dos mares gelados da Islândia e Terra Nova, para o que requereu o saber dos marinheiros do Norte. Não deixa, contudo, de fazer sentido que as conversas ouvidas por Colombo em Bristol17 possam ter constituído mais um elemento importante na prossecução da sua ideia, que admito já estar em gestação. E admito já estar em gestação porque este sonho de alcançar o reino do Grande Can, Cipango ou a Índia, não era tanto uma ambição do norte como seria do mundo italiano ou, mais recentemente, por­tuguês.

Pelo papel que os italianos tiveram no comércio com o Levante é natural que, desde sempre, tenham imaginado entrar no Mundo Índico, e obterem as mercadorias orientais livres das taxas inerentes ao transporte marítimo e a travessia pelo Médio Oriente. O que não tiveram foi solução fácil para esse problema. Foi a evolução dos conceitos geográficos (com e sem erros), e o desenvolvimento das navegações no Atlântico que lhes permitiu cismar sobre caminhos novos. Não é de espantar, portanto, que surjam dois homens, como Colombo e Caboto, sorvendo conceitos, técnicas e teorias por todo o lado (nem sempre de forma organizada e coerente) e a tentarem a sua sorte, no sentido de concretizarem o que a sua imaginação, de mercadores do Medite­rrâneo, concebeu.

* * *

Pouco tempo depois de chegar a Portugal, Colombo casou com Filipa Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, primeiro capitão donatário da ilha do Porto Santo, perto da Madeira. Hernando Colón, na sua Historia, relata que a sogra “le dio los escritos y cartas de marear que le habían quedado de su marido”, facto que foi contestado por Henry Harrisse afirmando que Perestrelo não era um navegador, sendo pouco provável que tivesse escritos, cartas e instrumentos náuticos. Na verdade Perestrelo era descendente de um comerciante italiano chegado a Portugal no final do século XIV e, como João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, comandou um dos navios que alcançaram e reconheceram aquelas ilhas, já conhecidas mas nunca povoa­das. Efectivamente nada há que nos diga que fosse um perito em navegação, mas era um criado do Infante D. Henrique, como muitos outros que navega­ram para a costa ocidental africana, sobre quem –salvo raras excepções– des­conhecemos se sabiam navegar e qual era a sua verdadeira experiência a dirigir navios ou o que sabiam sobre cartas de marear. Não é, aliás, muito importante sabê-lo com pormenor, mas pode deduzir-se que, na sua condição de capitão do Porto Santo e, sabendo-se que não viveu na ilha senão muito tardiamente (1428), para lá se desolando com frequência e pelo mar, não parece difícil imaginar que navegou até à sua morte, por alturas de 1457 ou 1458 (bastante antes da chegada de Colombo a Portugal). Num momento em que os navios do infante D. Henrique sulcavam todo o Atlântico Ocidental, quase até ao Equador, parece-me provável que Perestrelo alguma coisa sou­besse de mar e de navegações. Contudo –deixando esta polémica de parte– deve dizer-se que, após o casamento com Filipa Moniz, Colombo fez da ilha um dos seus pousos habituais, talvez porque a empresa comercial para quem trabalhava tinha interesses no comércio do açúcar madeirense, e o local lhe convinha. Tem-se dito que foi durante essa estadia que tomou consciência do tráfico marítimo português com o Golfo da Guiné, mas não creio que isso tenha necessariamente acontecido porque os navios não tinham de passar por ali. Com mais facilidade colheria a experiência desses mares, estando em Lisboa, na proximidade da Casa da Mina. Há, porém, um conjunto de obser­vações importantes que ele próprio descreve como tendo verificado no Porto Santo, e que serviram para lhe confirmar a ideia de que a ocidente daquelas ilhas, numa distância mais ou menos curta, existiam terras, de onde vinham restos de madeira e outros indícios. Aliás, o almirante tem mais notas sobre estes objectos flutuantes “vindos do ocidente”, que diz ter visto em Galway e que outras pessoas lhe disseram ter observado, também, na ilha das Flores (Açores). Nestes dois últimos exemplos, os vestígios em causa são corpos humanos que, segundo ele, apresentavam características físicas de rosto largo, tal como os habitantes do Cataio. Na minha opinião, o problema des­tes relatos está no facto de terem sido registados em notas muito posteriores ao próprio acontecimento, parecendo-me que são criações da imaginação de Colombo numa altura em que precisa de provar aos Reis Católicos que as terras onde chegara, eram as terras do oriente que visitara Marco Pólo.

Na verdade, a chamada Gulf Stream é uma corrente marítima com uma circulação geral, no Atlântico Norte, no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, qualquer objecto lançado ao mar, poderá ser arrastado por essa corrente, vindo da costa americana até à Islândia, à Irlanda ou a qualquer outro ponto da Europa. É por causa dessa corrente que as algas do Mar dos Sargaços chegam à costa portuguesa, onde eram recolhidas na praia da Apúlia, e alcançam a Noruega. O que é, de todo, inverosímil é que um cadá­ver humano chegue de uma costa à outra, em condições de lhe ser identifica­da qualquer forma facial, mesmo que tenha sido colocado, de forma ritual, dentro de uma pequena embarcação. E há ainda outro problema que é impor­tante referir: se a Gulf Stream corre de oeste para leste, pelo norte do Atlântico, e pode arrastar objectos vindos de ocidente até ao limite (aproxi­mado) dos Açores, na região do Porto Santo a sua direcção é de norte para sul, tornando improvável o aparecimento de alguma coisa vinda dos sectores geográficos que interessavam a Colombo18. Quer isto dizer que o movimen­to geral das correntes marítimas, que o almirante parece conhecer bem quan­do efectua a sua primeira viagem, não resulta da observação de achados flutuantes que dariam à praia do Porto Santo, aos Açores ou a Galway. Estes casos (observados ou inventados) serviram-lhe para argumentar com um objectivo específico, ou ajudaram a fortalecer uma convicção já delineada, mas a aprendizagem do Atlântico, propriamente dita, deve tê-la feito noutras circunstâncias que me parece estarem mais ligadas a viagens que se supõe ter feito ao Golfo da Guiné, em navios portugueses.


Jorge Luís Matos

Jorge Luís Matos – As Viagens de Colombo e a Náutica Portuguesa de Quinhentos (2)

Colombo tem muitas notas que nos permitem inferir que, efectivamente, esteve na Guiné e, eventualmente, em S. Jorge da Mina. As que me parecem mais significativas são as assimilações de vocabulário e as comparações que faz quando chega a novas terras, tomando como referência objectos, pessoas, ambiente ou flora da região da Guiné19. Há, apesar de tudo, informações con­cretas dessa sua presença que, nalguns casos, nos suscitam apenas mais dúvi­das e interrogações. Por exemplo, diz-nos a certa altura que “debajo de la línea equinoccial, en perpendicular, se encuentra la fortaleza de la Mina”. O referido lugar está afastado do Equador de 5º 10’ para norte, parecendo o erro demasiado grosseiro para se aceitar que efectivamente por ali andou e –como diz– “observé con diligencia la derrota, como suelen los capitanes y marine­ros, y después tomé la altura del sol con el cuadrante y otros instrumentos muchas veces”20 . O erro de mais de cinco graus pode dever-se ao facto de ter perdido a estrela Polar e de não saber, efectivamente, usar a altura do sol para determinar a latitude, apesar de o dizer. Hoje, a estrela deixa de ser observável abaixo da altitude de seis graus norte (depende da habilidade do observador), mas na época poderia sê-lo até um pouco mais a sul, dado que o seu afastamento polar era um pouco maior. Ponho a hipótese, portanto, de que ao ver a Polar muito baixa ou até de ter deixado de a ver, tenha inferido que estava sobre o Equador, estando ainda um pouco a norte dele. Em todo o caso esta é apenas uma hipótese plauzível para um erro que se afigura incom­preensível em face do saber anunciado21. Numa outra nota, do género das anteriores, diz que “El Rey de Portugal envió a Guinea en el año del Señor 1485 al maestro José, su físico y astrólogo, para reconocer la altura del sol en toda Guinea. Este cumplió com todo y dio cuenta al dicho sereníssimo rey, cuando yo me encontraba presente”. Esta afirmação (que não podemos esquecer ter sido escrita uma década depois dos factos) poderia entender-se como tendo Mestre Vizinho explicado a D. João II, quais as latitudes de diversos pontos de África, verificados por si próprio, sendo que isso “acon­teceu” na presença de Colombo, talvez quando veio a Portugal na segunda metade da década de oitenta, já depois de daqui ter saído, em 1484.

Poderíamos aceitar que tal facto foi simultâneo com a descrição de Bartolomeu Dias dos lugares do sul e da posição do Cabo da Boa Esperança, que Colombo também diz ter ouvido contar ao rei pelo próprio, apesar de ter registado a latitude com um erro de cerca de 10º22. Um problema um pouco diferente surge numa das anteriores notas do seu punho, ao afirmar que tomou (o próprio) a altura do sol com o quadrante “y encontre que concor­daba con Alfragano, es decir, que correspondian a cada grado 56 milhas y 2/3 [...] Lo mismo halló el maestro José, físico y astrólogo y otros muchos”23. Não cabe no âmbito deste trabalho analisar com pormenor os valores do grau terrestre com que contou Colombo, Toscanelli ou, eventualmente, Ptolomeu, para deduzirem que o espaço da terra desconhecida, entre o extremo da Ásia e a Europa, era bastante curto e estava ao alcance de uma viagem marítima muito fácil. O que não levanta dúvidas é que o módulo do grau terrestre de Mestre Vizinho era de 17 ½ léguas, e presumia um perímetro equinocial que não permitia as interrogações (sonhos) que assaltavam Colombo. E isto quer dizer que não pode ser verdade que se tenham encontrado e partilhado expe­riências desta natureza na costa da Guiné.

Bem sei que, no emaranhado de medidas de comprimento, que povoaram o Mediterrâneo desde a Antiguidade, e respectivas correspondências com o grau terrestre, não é fácil saber com certezas, que valor tinha a milha de que falava Colombo. Que comprimento tem cada um dos estádios daqueles que quinhentos perfazem um grau de latitude, segundo Ptolomeu? Que tamanho exacto teria a milha das que considera Alfragano?... É muito difícil sabê-lo e os jogos de números, quando estes nos surgem nestas quantidades, permi­tem tudo. O que parece óbvio é que, atendendo à distância que permeia entre o extremo ocidental da Europa e o extremo oriental da Ásia (medida em está­dios, em milhas, em léguas ou em côvados árabes, isso pouco importa), o almirante acreditava que das Canárias a Cipango distavam apenas cerca de 45 ou 50 graus. Sendo evidente que esta ideia não era aceite nem pelos cosmó­grafos portugueses nem pelos castelhanos. Não quer isto dizer isto dizer que Colombo não foi à Guiné. Significa apenas que não teve com Mestre Vizinho as conversas que afirma terem ocorrido, e que não estava a par dos mais avançados conceitos geográficos do seu tempo. A fabulosa biblioteca de Cristóvão Colombo só foi formada a partir do momento em que saiu de Portugal (talvez por razões de natureza económica), e é como anotações a alguns dos livros que adquiriu então, que surgem os comentários supracita­dos, com as afirmações acerca de factos e acontecimentos que, nalguns casos, me parece difícil que tenham ocorrido. Não quer isto dizer que o almirante desconhecesse as matérias sobre que lia. Na maioria das situações, os dados e os utensílios intelectuais da época, não permitiam uma explicação incon­testável da maioria dos conceitos, e as suas ideias poderiam parecer tão legí­timas como quaisquer outras. É muito fácil olhar para o que disse ou para o que acreditou e defendeu desesperadamente, e criticá-lo com o saber de hoje, mas não é legítimo fazê-lo. Entendo que estava no limiar de um saber de ori­gem clássica, que avançava a passos largos, e que o deixou petrificado no patamar onde imaginou que podia fazer algo tão fabuloso como chegar à China e ao Japão navegando para ocidente. Terá falhado como renascentista erudito, mas não falhou como navegador, como veremos mais adiante.

As grandes navegações portuguesas que conduziram à exploração do Atlântico até ao Cabo da Boa Esperança, abrindo o caminho da Índia e do Extremo Oriente, começaram de forma sistemática a partir de 1415/18, após a conquista de Ceuta levada a cabo pelo rei D. João I, com a estreita colabo­ração dos seus três filhos mais velhos. É sabido como o infante D. Henrique ficou encarregado dos assuntos africanos, a partir de 1418, e como a concen­tração de meios navais no porto de Lagos permitiu o lançamento de sucessi­vas viagens de reconhecimento que, persistentemente, foram chegando mais e mais longe. Ao ler o Diário da Primeira Viagem de Colombo, e tomando consciência dos temores que afligiram as tripulações, ao ponto de viverem a eminência de motins e revoltas, entendemos a angústia daqueles que pela pri­meira vez seguiram ao longo das praias desertas da África Ocidental, camin­hando para sul, mas sentindo o medo de não conseguirem regressar, e de não terem meios suficientes para sobreviver. Tinham herdado os portugueses as técnicas ancestrais de navegação praticadas no Mediterrâneo desde longa data, e que eram do conhecimento de quase toda a Europa.

Conheciam a bús­sola, sabiam manter um rumo no mar, estimavam a distância percorrida e esperavam alcançar uma costa em pouco tempo, acreditando que a chegada a um porto onde pudessem obter apoio não seria muito difícil. E foi com estas técnica simples que se aventuraram pelo Atlântico, não ousando, porém, afastar-se muito de terra, confiando em sinais que a experiência tinha ensi­nado a ler e interpretar, como avisando de mau tempo, da proximidade de terra, da existência de baixos ou escolhos, etc. E defendiam-se com técnicas que observamos também nas viagens de Colombo, quando sabe que está na proximidade de ilhas e tem de navegar devagar, sempre de dia e com vigias nas vergas, etc. São saberes ancestrais, nalguns casos milenares, transmiti­dos de geração em geração, com uma aplicabilidade que, nalguns casos, vem até aos dias de hoje, apesar do desenvolvimento técnico e da panóplia de aju­das à navegação disponíveis. Estou em crer que no primeiro reconhecimento da Madeira (1418) e nas viagens até às Ilhas Canárias nada mais se utilizou do que o velho saber marinheiro do Mediterrâneo, delineando as rotas com base em referências de terra e estimando os caminhos percorridos, quando das sempre pequenas travessias. Um problema grave se levantava, contudo, a estas viagens ao longo da costa africana. No caminho do sul –sobretudo durante as épocas de bom tempo, favoráveis à navegação– corre um ventin­ho favorável de norte ou noroeste, a que se soma uma corrente franca com o mesmo sentido, a ajudar à viagem. O problema é que, a constância desse tempo, faz com que o regresso se transforme num suplício, em que os navios tinham de fazer bordos alternados, demorando um tempo infindo para ganhar o mesmo caminho que para sul fora feito num instante. O que sentiria essa gente, quando olhava para a costa deserta das praias africanas, sem um local onde recolher alimentos ou água, sabendo que cada dia de viagem para sul, poderia significar vários dias para voltar ao ponto de partida?

Assim compreendemos como foi difícil o avanço e como apenas 16 anos depois do reconhecimento da Madeira, se conseguiu passar além do mítico Cabo Bojador. Por incrível que isso possa parecer, quando tal aconteceu, já há sete anos que tinham sido avistadas as primeiras ilhas dos Açores (1427). Gago Coutinho tem uma explicação lógica para esta precoce descoberta, imaginando que os navios que regressavam de África começaram a fazer um imenso bordo ao largo do Atlântico, com o vento na amura de estibordo, para depois virarem e demandarem a costa portuguesa, por alturas do Algarve ou de Lisboa. Foi num desses bordos largos que foi avistada a primeira ilha aço­riana. Contudo, essa navegação, mais ou menos larga, que constituía a solução mais fácil de regresso a Portugal, apresentava uma dificuldade que se veio a notar na forma titubeante e lenta como se colonizou este arquipélago. Os marinheiros embrenhados assim no mar alto, não tinham uma maneira de saber onde estavam, confiando em intuições que, de maneira nenhuma, se podiam revelar seguras. Impôs-se aos homens do mar alto a necessidade de utilizar um meio astronómico de orientação, semelhante, no fundo, aquele que já era conhecido dos cosmógrafos, mas que era difícil de aplicar por gente tosca e mal preparada em coisas de matemática, com dificuldade para contas complicadas. A primeira informação concreta da utilização de um quadrante para observar a altura da Estrela Polar, como forma de identificar o local onde se navegava, consta de um relato de Diogo Gomes, numa viagem ao largo das Ilhas de Cabo Verde, entre 1455 e 1460. Nessa altura já se sabia bem que a forma de contornar os ventos de norte e noroeste, para regressar a Lagos, era fazendo uma enorme volta pelo largo, passando, nal­guns casos, para oeste dos Açores, e regressando a terra, num outro bordo, quando a altura da Estrela Polar indicasse que era tempo de o fazer. Foi assim que se fez a aprendizagem do Atlântico Norte, aperfeiçoando a técnica de observação astronómica, sabendo que a altura do Pólo Norte era igual à lati­tude do lugar, e analisando como se comportavam os ventos e as correntes. No tempo de D. João II, quando Colombo já estava em Portugal, as viagens já tinham entrado pelo Golfo da Guiné e já tinham revelado as voltas que o mar dá nas zonas equatoriais. Provavelmente, já existia uma nova forma de cálculo da latitude, por observação da altura do sol e realização de um cál­culo simples, onde entra a declinação do astro, lida numa tabela própria.

Depois de que, em 1481, foi construída a fortaleza da Mina, as viagens eram frequentes porque o comércio era lucrativo. O caminho do sul era fácil porque, depois da “nortada portuguesa” associada à circulação de ar em torno do anticiclone dos Açores, surgem os ventos alísios de nordeste, que permi­tem fazer toda a viagem relativamente perto da costa. Passada que era a Serra Leoa e dobrado o Cabo das Palmas, os navios continuavam a ter uma contra corrente equatorial que os arrasta para dentro do golfo da Guiné e que conti­nua a facilitar a viagem, mesmo em situações de calmaria. Para regressar era praticamente inútil tentar fazer o mesmo caminho, porque a corrente o impossibilitava. Navegava-se francamente a sul, procurando a corrente equatorial do sul, e entrava-se na tal volta larga que, muitas vezes, ia bastante para ocidente, e que pode estar na origem de avistamentos de ilhas a que não era possível regressar, mas que podem ter alimentado as lendas ouvidas por Colombo quando da sua estadia em Portugal. Com a sua ida à Mina –even­tualmente pelos anos oitenta a oitenta e três do século XV– o almirante pode não ter falado com Mestre José Vizinho (como já se disse) e pode até nem se ter apercebido bem da latitude desse local, mas aprendeu que existia uma vento regular, soprando de NE, entre o paralelo das Canárias e o Golfo da Guiné24, e numa extensão considerável para oeste. Era esse vento que tinha de ser contornado com uma volta larga, até que pela latitude dos Açores sur­gia um vento de oeste que permitia a aproximação à costa portuguesa com toda a facilidade25. E é na conjugação destes dois ventos, conhecidos dos por­tugueses desde que se efectuavam as viagens à Mina, que reside o “segredo” náutico das viagens de Colombo. E a forma serena como ele conduz os seus navios parece demonstrar que sabe isso muito bem, embora compreenda que os outros não estão tão seguros quanto ele.


Observemos, portanto, alguns aspectos registados no chamado Diário de Bordo da 1ª viagem e que, infelizmente, não é mais do que uma cópia modi­ficada e simplificada, provavelmente tirada de outras cópias de um original perdido. E é importante referi-lo porque o texto, apesar de ser o produto da consciência de Las Casas, apresenta erros grosseiros, que nos parece impossível constarem do documento primitivo, se o mesmo foi escrito por quem dirigiu a navegação e esteve atento aos fenómenos marinhos. A pri­meira questão que me parece pouco coerente é a constante referência ao facto de Colombo, na viagem de ida, estimar uma distância percorrida e registar um valor ligeiramente inferior, com o intuito explícito de dar a entender ao pessoal de bordo que não estavam a afastar-se tanto de terras de Espanha, quanto, na verdade, acontecia. Esta atitude ocorre logo no registo de 10 de Setembro, pouco depois de perderem de vista a terra das Canárias. Diz expli­citamente: “Nesse dia e nessa noite fez sessenta léguas [...] Mas só contou quarenta e oito léguas a fim de que sua gente não se assustasse com a duração da viagem”26. Esta situação repete-se até à chegada às Bahamas, mas tem como contradição o facto de que, em determinadas alturas, se reunirem os pilotos dos diferentes navios, e acertarem entre si a estima, como aconteceu no dia 19 de Setembro. Na minha opinião, este género de descrições de “manobras” atribuídas a temerários comandantes, para ludibriar as tripu­lações ou mesmo forçá-las a ficar no mar sem revoltas ou protestos (porque entregues à competência daquele único homem), tem algo de mítico, que se repete em muitos outros relatos e, de um modo geral, são histórias construí­das a posteriori27. Não estou inclinado para valorizar o facto.

Não me parece serem de valorizar, igualmente, pequenas incongruências de registo como a que acontece no dia 17 de Setembro. “Continuou a navegar para oeste [...] A corrente ajudava-os” –e logo a seguir– “Viram muita erva e muitas vezes. Era erva de rocha e vinha do poente”. Ora se vento e corrente “empurravam” para oeste, a erva não podia vir desse mesmo lado. Trata-se, naturalmente, de um interpretação que tem a ver com a ansiedade de encontrar terra daquele lado, presente na forma como se interpretavam todos os sinais.

Há, no entanto, um conjunto de registos referentes a variações nas agul­has magnéticas que é interessante comentar. O primeiro vem logo no dia 13 de Setembro, onde se lê: “Nesse mesmo dia, ao começo da noite, as bússolas marcaram o noroeste, e de manhã ligeiramente o nordeste.” O fenómeno tem hoje uma natural explicação na variação da declinação magnética em função do local, havendo linhas chamadas de agónicas, onde essa declinação é zero. A fazer fé no registo do Diário –que me parece perfeitamente verosímil– Colombo afastou-se para oeste ao encontro dessa linha agónica, que hoje é difícil saber onde passava exactamente, mas sobre a qual há alguns registos do princípio do século XVI que apontam para a região das Canárias (não é incompatível que fosse ligeiramente mais a oeste). O Tratado da Agulha de Marear, de João de Lisboa (1514), não só aponta a existência da mesma, como a identifica com um meridiano, e, com base nisso, aponta uma solução para determinação da longitude que logo se revelou errónea. As mais rigoro­sas informações que até nós chegaram foram-nos dadas por D. João de Castro, na sequência da sua primeira viagem à Índia (1538), e indicam que nas proximidades das Canárias as agulhas declinam 5º 30’ para nordeste (nordesteiam, na linguagem da época). Mas, alguns anos antes destas obser­vações, surge no extremo sul do continente africano o topónimo “Cabo das Agulhas”, referenciado nos roteiros portugueses como um sítio onde as agul­has não variavam. Quando os navios passavam demasiado ao largo, sem con­seguirem avistar terra, saberiam que cruzavam o cabo, verificando este fenómeno, dizem-nos. O Cabo das Agulhas é uma designação relativamente tardia, mas tive ocasião de ver recentemente que o planisfério português anó­nimo, dito “Cantino”, refere a pequena baía, contígua a esse cabo, designada “Golfo das Agulhas”, revelando que no princípio do século XVI, os marin­heiros portugueses conheciam o fenómeno da declinação, e sabiam que variava de local para local. Ora, em boa verdade, os registos do Diário, refe­rem a variação das agulhas, mas não são muito claros quanto à interpretação dos mesmos. No entanto, não me parece possível que alguém possa andar no mar alto sem ter reparado nele. Se Colombo observava a Polar, para deter­minar a latitude do lugar e sabia até que havia um regimento para acertar os valores da altura, em função da posição da Ursa Menor, não me parece possí­vel que nunca tivesse reparado na diferença (por pequena que fosse) entre a direcção do Pólo e a que é indicada pela agulha. E em abono da diligência e atenção com que observava as estrelas, faço notar o que consta no registo de 30 de Setembro, onde está escrito o seguinte: “Anotou que «as estrelas a que se chama guardas, quando cai a noite, estão perto do braço da porta do poen­te; e quando o dia nasce, estão alinhadas, sob o braço, na direcção nordes­te...»”28.

(Olhando o norte na noite de 29 para 30 de Setembro de 1492, ao anoitecer e ao amanhecer, podiam ver-se as guardas da Ursa Menor nas posições referenciadas no Diário.Clique para ampliar)

Hoje esta disposição do céu é fácil de verificar como verdadeira e rigorosa com a ajuda de um computador e de um programa de astronomia, como tive ocasião de fazer. De certo modo, parece-me difícil que qualquer navegador que utilize correntemente a bússola e a altura da Polar, não tenha noção das variações da agulha. Deve dizer-se, no entanto, que a mais antiga referência escrita que conheço é a que consta no Diário. Estou em crer que quem não percebeu o fenómeno foi Las Casas, porque não tinha de o per­ceber, mas o almirante não podia deixar de o conhecer muito bem29.

Por último saliento a rota que o almirante procurou realizar até ao seu destino (que para si seria Cataio ou Cipango) e como regressou à Europa. Do que se infere do Diário, partiu de Palos a 3 de Agosto, realizando um per­curso simples e conhecido até às Canárias, onde reparou a Pinta que fizera uma avaria no leme. Só zarpou em direcção ao Atlântico ocidental a 6 de Setembro, partindo de La Gomera (28º N). Seguiu um rumo oeste, com um vento favorável, que suponho ter soprado de NE, fazendo-lhe orçar os navios e levando a que tivesse de chamar a atenção dos marinheiros do leme30. Só mesmo no final da viagem cedeu em guinar para SW, porque avistou muitas aves que nesse sentido voavam. O Diário afirma “porque o almirante sabia que a maior parte das ilhas que são dos Portugueses foram descobertas seguindo o voo das aves”, mas eu julgo esta consideração irrelevante, por me parecer que esse saber era de todos os marinheiros e não só dos portugueses... Alcançou a ilha de S. Salvador em 12 de Outubro de 1492, percorrendo toda a região das Bahamas. A 30 de Outubro, estando em Cuba, opinou que esta­ria “quarenta e dois graus norte da linha equinoxial”, segundo o texto de Las Casas. Mas o copista acrescenta, “se o manuscrito de onde copiei isto não estiver errado”, o que efectivamente acontecia. Estavam por cerca de 21ºN. Aliás, no dia 2 de Novembro está escrito “Nesse local [não muito longe do anterior], nessa noite, o almirante fez o ponto com o auxílio de um quadran­te e achou que estava a quarenta e dois graus da linha equinoxial”. Volta a haver um erro, para o qual não tenho explicação coerente e não quero espe­cular. Apenas não creio que seja falta de conhecimento de Colombo ou defei­to do instrumento em causa, tanto mais que, noutros locais do Diário, se tecem considerações sobre que a latitude daquelas ilhas deve ser próxima das Canárias. Além do mais, era conhecida a latitude das Ilhas dos Açores, de Lisboa, de Cádiz e de Palos. Não seria, portanto, normal que achando-se a 42º de latitude, procurasse ganhar ainda mais norte para regressar a Espanha, como de facto aconteceu. A meados de Janeiro iniciou o regresso a Espanha e a 16 de Fevereiro estava em Santa Maria, nos Açores, precisamente no caminho que tinha de seguir.


Jorge Luís Matos

Jorge Luís Matos – As Viagens de Colombo e a Náutica Portuguesa de Quinhentos (3)


À maneira de conclusão, resumo pois os pontos de vista que tentei explanar ao longo do texto. Colombo era descendente de um mercador ita­liano (ele próprio ligado ao negócio), familiarizado com toda a riqueza ine­rente ao comércio com o Levante e com os produtos orientais, que não podia deixar de sonhar com uma forma de chegar a toda a riqueza que lhe passava diante dos olhos. Fascinou-o, por isso, o espaço português da segunda meta-de do século XV, quando se desenvolveu o comércio africano e Lisboa se tor­nou uma metrópole cosmopolita. Teve condições de acesso a um saber clássico, muito ao jeito do Renascimento. Aprendeu latim, leu livros que falavam de mundos distantes e prodigiosos e tomou conhecimento de con­ceitos geográficos que lhe suscitaram soluções alternativas à rede comercial que sempre conhecera. Pensou até que, se conseguisse abrir uma nova e revo­lucionária via para esse comércio, caber-lhe-ia o lugar que vira ser ocupado por gente que invejou durante a sua infância e juventude. Portugal foi, talvez, o local onde esta imaginação fértil e espírito aventureiro, mais se desenvol­veram, fosse pelo momento que se vivia, fosse pelas viagens que teve opor­tunidade de efectuar. Imaginou que o Oriente, de onde vinham as mercadorias ricas que, desde miúdo via chegar à sua terra e com que se cru­zara em Lisboa, podia estar ao alcance de meia dúzia de dias de viagem, caminhando atrás do sol poente. Foi um sonho de muitos outros, contudo, no caminho da Guiné e no contacto com as viagens portuguesas ele percebeu que no Atlântico Norte havia uma via de vento favorável ao caminho para o sul e ocidente (os alísios de NE) e outra de regresso, um pouco mas a norte. Digamos que ao juntar este saber prático, colhido no mar, com um conheci­mento geográfico clássico e difuso, aprendido em leituras rápidas e em dis­cussões literatas, elaborou o plano que seria a obsessão da sua vida. Apesar de não ter alcançado os objectivos que se propunha, as suas viagens são o espelho de um conhecimento náutico que não é possível negar, e que resul­tou de uma experiência múltipla onde teve um papel determinante o conhe­cimento do regime de ventos e correntes do Atlântico. A herança que levou de Portugal.

NOTAS
1 Casas, Bartolomé de las: Historia de las Índias, México, 1995, vol I, p. 34.

2 Colón, Hernando: Historia del almirante, Barcelona, 2006, p. 56.

3 “Cullam famoso cossairo Francês”, Cf. Rui de Pina, Crónicas de [...], Porto, 1977, p. 851.

4 Cf. Pedrosa, Fernando: Cristóvão Colombo corsário em Portugal (1469-1485), Lisboa, 1989, passim.

5 Colón, H.: Historia..., p. 74. Esta afirmação datou a viagem de Diogo Teive e a descoberta das ilhas de Flores e Corvo de 1452 e, segundo o relato de Hernando, com Diogo Teive ia um “piloto” de Palos (“gallego” segundo Las Casas), chamado Pedro Velasco (ou Pedro Vasquez), que, em La Rábida falou com Colombo.

6 Damião Peres, Damião: História dos Descobrimentos Portugueses, Porto, 1992, p. 252. Existem sérias reservas quanto à autenticidade do referido documento.

7 Radulet, Carmen: “As viagens de Descobrimento de Diogo Cão”, in Mare Liberum, nº 1, Lisboa, 1990, p. 188.

8 Apenas João de Barros –que escreveu muitas décadas depois do sucedido– lhe dedica umas linhas para dizer que “todos houveram por vaidade as palavras de Colom”. Apud Peres, D.: História dos..., p. 257.

9 É provável que esta viagem venha na sequência da que fora interrompida em 1476, pelo ata­que corsário, mas isso é apenas uma conjectura.

10 Historia Rerum ubique gestarum de Eneas Sílvio Piccolomini, eleito Papa Pio II.

11 Cólon, Cristobal: Textos y documentos completos, Alizana Editorial, Madrid, 2003, p. 285.

12 Em anos de extremo frio os gelos vêm até à ilha.

13 Esta afirmação de Colombo é, aliás, mais um problema para a análise da verdade do que ele próprio escreve. Por perto do Canal da Mancha e nalguns portos da costa ocidental da Grã-Bretanha, as marés podem atingir 10 metros (cerca de cinco braças e meia), mas na Islândia e na costa leste da Groenlândia é bastante mais pequena, não alcançando sequer os dois metros.

14 Estava há algum tempo em escavações uma estação arqueológica do que supunha ser uma povoação viking na Terra Nova.

15 Jaime Cortesão, Jaime: Os Descobrimentos Portugueses, vol. IV, 4ª Ed., Lisboa, 1985, p. 1146 e ss. Cristiano I tem um reinado quase coincidente com o de Afonso V.

16 Uma carta escrita pelo mercador veneziano, Lorenzo Pasqualigo, datada de 23 de Agosto de 1497 diz que “o nosso veneziano [Caboto] que partiu de Bristol num pequeno navio, para procurar novas ilhas, regressou e diz que descobriu terra firme a 700 léguas daqui, e que é o país do Grande Can [China]”. São palavras que demonstram bem o intuito da viagem de Caboto.

17 Apenas por intuição, e porque as informações que dá nos textos já citados não me parecem de quem conheceu a Islândia e muito menos os mares gelados que lhe estão a norte, estou a admitir que Colombo não passou de Bristol, reservando a possibilidade que tenha ido a Galway (Irlanda).

18 Estas informações referem-se a uma direcção predominante da corrente que só poderá arrastar objectos para as praias do norte e leste da Ilha do Porto Santo. No entanto, ocorrem fenómenos locais e de pequena duração que se manifestam de outra forma. Sobre o caso específico do Porto Santo tive o cuidado de contactar com o Comandante Castro, meu amigo, que desempenhou o cargo de Capitão do Porto do Porto Santo, durante quatro anos e meio. É um cargo que obriga a uma particular atenção sobre os fenómenos marinhos, e o seu testemunho era particularmente importante. Disse-me não ter notícia de nenhum relato de objectos vindos de longe, sobretudo de ocidente, mas refere que, em circunstâncias par­ticulares de vento dos quadrantes do sul, chegam às praias do Porto Santo objectos vindos da própria Ilha da Madeira. É insólito e invulgar, ocorre apenas numa área restrita, mas acontecia duas ou três vezes por ano. Esses objectos aparecidos na praia ocidental do Porto Santo podem ser identificados como vindos de longe, sobretudo, se é isso que se quer ver neles.

19 Varela, Consuelo: Cristobal Colom. Retrato de un hombre, Alizana Editorial, Madrid, 1992, p. 56.

20 Colón, Cristobal: Textos y documentos..., ed. de Consuelo Varela, Madrid, 2003, p. 90

21 Há muitos erros absurdos de coordenadas em escritos de Colombo ou em textos supostamen­te copiados deles. Nalguns casos não encontro explicação, mas aqui atrevo-me a avançar esta hipótese.

22 Colombo afirma ter ouvido Bartolomeu Dias dizer que o Cabo estava a cerca de 45º S, quan­do, na realidade está em 34º 30’S. Alguns historiadores quiseram interpretar esta informação de Colombo como o resultado de uma tentativa portuguesa de alongar distâncias e criar a sensação, em Castela, de que a volta do Cabo para a Índia era, de facto, muito longa. Sem querer afirmar nada em definitivo, porque me parece que o assunto necessita de mais estudo eu entendo todos estes erros de Colombo (Mina, Thule, Cabo da Boa Esperança, etc.) como uma tentativa do próprio de dar consistência à sua argumentação sobre as terras que descobrira a Ocidente.

23 Sobre esta eventual presença de Mestre Vizinho na Guiné, que me parece bastante duvidosa, veja-se Luís Albuquerque, int. e notas, Guia Náutico de Munique e Guia Náutico de Évora, Lisboa, 1991, p. 78.

24 Refiro-me aos alísios de NE que sopram no Hemisfério Norte e se sentem até regiões mais ou menos a sul, consoante a época do ano considerada e o deslocamento do chamado Equador Meteorológico.

25 A latitude dos chamados “gerais do oeste” varia também com a época do ano, como é com­preensível.

26 Colombo, C.: Diário de Bordo da 1ª viagem, Mem Martins, 1990, p. 24.

27 Apenas como exemplos desta forma mítica de fazer o relato, no sentido de valorizar a cora­gem do capitão, em relação a uma turba de pessoal assustado, realço o relato da viagem de Vasco da Gama, feito por Gaspar Correia (que não é confirmado por nenhuma outra fonte). Na Moby Dick, de Melville, num gesto de arrojo que transformaria a aventura irreversível, o capitão destrói as agulhas de bordo à frente de toda a tripulação.

28 A introdução é de Las Casas, mas a parte mais importante está assinalada como transcrição do que escreveu Colombo.

29 O que não quer dizer que o tenha estudado com rigor e atenção, procedendo a registos sis­temáticos. Pelo menos, eles não são conhecidos e não é isso que se deduz do texto de Las Casas.

30 “Os marinheiros governavam mal, derivando para o quarto noroeste e mesmo para o meio quarto”. Cf. Colombo, C.: Diário de..., p. 24. É um fenómeno natural com o vento fresco.

Jorge Luís Matos

sábado, 24 de outubro de 2009

Pedro Mártir de Angleria - Opus Epistolarum (IV)


ASENSIO, Dr. D. Joaquín Torres
Fuentes Historicas sobre Colón y América, Pedro Martir Angleria, Tomo I, Madrid, Imp. de la S. E. de San Francisco de Sales, Calle de la Flor Baja, núm. 22, 1892, pp. 36 a 41.



«36

(...)

Carta CLVIII.—Al Arzobispo de Granada.

.... De los antípodas cada día
se refieren cosas más y más gran-
des. Dejo á un lado lo de las rique-
zas, á las cuales tú concedes poca
atención. Esperamos que han de
venir á la religión cristiana muchos
millares de hombres... Alcalá de
Henares, 15 de Enero de 1495
.



Carta CLX. — Al Cardenal Bernardino
Carvajal
.

.... Han sido mandados diversos
pilotos de naves á diversas playas
del otro hemisferio; lo que traigan
lo sabrás por mí, si vivo.... Zara-
goza, 11 de Junio de 1495
.

Carta CLXIV.—Al mismo.

.... Desde la Española que el
mismo Almirante Colón, autor de
tan gran descubrimiento, piensa que//



37

// es la mina de oro, Ophir, de Salo-
mon
, paso á otra provincia al Occi-
dente, cuyo principio dista poco
trecho del último ángulo de la Es-
pañola: pues esta región, de anchu-
ra desigual, que los indígenas lla-
man Cuba
, tiene setenta mil pasos.

Colón tomó el lado meridional de
tierra: me ha escrito que nave-
go por sus costas hacia el Occidente
setenta días naturales y se volvió á
la Española; desembarcó allí y en-
vió á los reyes quien les diera noti-
cias de su regreso. Ha escrito que
las costas de aquella tierra hacen
mucha curva hacía el Mediodía, de
modo que alguna vez se encontró
próximo al equinoccio.

Contaba que á mano izquierda
había innumerables islas. De
las costas de esta tierra grande,
advierte que desembocan en el mar
ríos muy varios, éstos fríos, aqué-
llos muy calientes, la mayor parte
dulces, otros de otro sabor; en la
mayor parte de ellos encontró gran
abundancia de peces, en otras par-
tes muchas conchas de las cuales//



38

// se arrancan las perlas. Dice que
pasó por mares casi condensados de
tortugas muy grandes; y que na-
vegó por puntos vadeables, algunos
más blancos que la leche, y por to-
rrentes entre estrechas gargantas
de las islas; y afirma que también
por aguas turbias y cenagosas.



Piensa él que por el ámbito de
tierra inferior á nosotros ha reco-
rrido la mayor parte del orbe des-
conocido, y le parece que no le fal-
taron dos horas solares enteras para
llegar al Quersoneso Aureo, meta
del límite oriental; pues sabes,
Rmo. Purpurado, dominando como
dominas todo género de doctrina,
que hasta ahora se había dejado
por desconocido todo lo que hay
por el hemisferio inferior desde
nuestro Cádiz hasta el Quersoneso
Aureo. Este Almirante, pues, se
gloría de haber dado al género hu-
mano esta tierra, porque estando
oculta la ha descubierto con su
industria y su trabajo. Sostiene que
esa región es el continente de la
India del Ganges
.//



39

// Que de esto me admire no me lo
permite Aristóteles, quien en el li-
bro De coelo et mundo, dice que la
India no dista mucho de las playas
de España, y Séneca y algunos
otros. Dice que esta región está muy
surtida de puertos semicirculares,
y dentro llena de enormes anima-
les, y lo indicaban las huellas de
ellos, que podían ver los que baja-
ban á tierra; y estando en el mar de
noche oyeron mugidos horrendos (1):
atestiguaban haber gran plaga.

Por medio de sus intérpretes is-
leños, cuyo idioma era próximo á
los idiomas de esta tierra, aprendió
que no se acaba en parte alguna,
y así tiene por cierto que es un
continente
. Pero encontró desnudos
también á los habitantes, como lo
hemos dicho de los insulares. Con-
tentándose con la excursión de po-
___________


(1) No es extraño que en tales circunstancias cre-
yeran cosa del otro mundo el pavoroso bramar del
cuguar ó del jaguar, cuyos increíbles rugidos retum-
ban, como dice Maite Brun, desde la desembocadura
del rio del Norte hasta la otra parte del río de las
Amazonas. //



40

// cos lugares, por no detenerse, en
conformidad al precepto de los Re-
yes, regresó á la Española, desde
donde promete que vendrá pronto
á presentarse á los Reyes para dar
larga cuenta de los descubrimien-
tos.... Tortosa, 9 de Agosto de 1495.



Carta CLXVIII.—Al mismo.

....Del Nuevo Mundo nuestro Al-
mirante Colón ha traído muchas
sartas de perlas orientales, de cier-
tas costas que recorrió al Mediodía
hacia el sexto grado del equinoccio.
Piensa que estas regiones son con-
tiguas y adherentes á Cuba, de
modo que las unas y las otras sean
el propio continente de la India
gangética
; y por estas playas na-
vegó muchos días, y confiesa que
no vio el fin ó señal alguna de té-
rmino.
Dice que los indígenas llaman
aquellas regiones Paria
, muy llena
de pueblos. Los habitantes se ali-
mentan de la carne de las conchas
de que raen las perlas, con otras
viandas. En la mayor parte de los//



41

// lugares cubren sus vergüenzas con
calzoncillos de algodón, alibi cu-
curbitula includunt, alicubi fu-
niculo praeputium, reducto nervo,
ligant, ad mictum tantum, aut coi-
tum solvunt
; por lo demás, van
también desnudos.

Fué para los nuestros gran prue-
ba de que aquella tierra es conti-
nente
, que sus bosques á cada paso
están llenos de nuestros animales,
como ciervos, jabalíes y otros así,
y de las aves, patos, ánade y
pavos, pero no de varios colores.
Dicen que los machos discrepan
poco de las hembras. Los habitan-
tes son cazadores sagaces: á cual-
quier animal le clavan las saetas.

Cambian contentos las perlas
por brazaletes, cascabeles, piececi-
tas de vidrio y otros objetos seme-
jantes de comercio. Indicaban que
recogerían gran cantidad de perlas,
si los muestros prometían volver.

Estas cosas van con más latitud
en los libros que estoy escribiendo
solamente de estos descubrimien-
tos... Burgos, 5 de Octubre de 1496.//»


___________

Imagens:


Christophorus Columbus
BRY, Théodore de, 1528-1598
[India Orientalis]. - Francfort : Wolffgangus Rahter et Joannes Israel de Bry, 1598-1628.


Columbus in India
BRY, Théodore de, 1528-1598
[India Orientalis]. - Francfort : Wolffgangus Rahter et Joannes Israel de Bry, 1598-1628.


Perlarum insula
BRY, Théodore de, 1528-1598
[India Orientalis]. - Francfort : Wolffgangus Rahter et Joannes Israel de Bry, 1598-1628.


Monstra marina et terrestria
MUNSTER, Sébastien, 1489-1552
Cosmographiae uniuersalis Lib[ri] VI. (...) Autore Sebast[iano] Munstero. - Basileae : apud Henrichum Petri, 1552, pp. 852.


PTOLEMAEUS, CLAUDIUS.
Cladii [sic] Ptolomei Viri Alexandrini Cosmographie Liber ... . [ ... Anno MCCCCLXXXII ... Vlme ... Leonardvm Hol ... (Ulm, Lienhart Holle, July 16, 1482)] Folio, 133
.

Schöner Sammelband. Compiled by Johann Schöner. Schöner Sammelband. Nuremberg: ca.1516. Jay I. Kislak Collection. Rare Book and Special Collections Division (143).

Tabula Asiae VIII (Central Asia)" complete with monsters, by Munster, printed in Basle in 1545.

Sebastien Münster, Cosmographia (...) 1628.



Eduardo Albuquerque

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (4)

4. Colombo em Portugal e a política de sigilo

Um dos mais radicais dos desenvolvimentos da política de sigilo (que teve, de qualquer forma, um longo curso na historiografia portuguesa) disse precisamente respeito à figura de Cristóvão Colombo. Em artigo publicado em 1935, Armando Cortesão defendeu a tese de que Colombo não passava, afinal, de um agente secreto ao serviço de D. João II, enviado por este aos Reis Católicos (23). Com que objectivo? Estando D. João seguro de que o caminho marítimo para a Índia era mais curto fazendo o contorno do continente africano, Colombo teria sido incumbido de convencer Fernando e Isabel a seguirem a rota ocidental. Os conhecimentos geográficos dos Portugueses garantir-lhes-iam que por esse lado o acesso à Índia era muito mais moroso, e o rei português ficaria com as mãos livres para prosseguir o seu plano.
A ideia não era completamente nova, e aparentemente só a notoriedade de Armando Cortesão, que acabava de publicar uma obra imensa que o impôs de imediato como um dos grandes historiadores da cartografia do seu tempo, a relançava com créditos reais (24).
Pode todavia argumentar-se que seria este um escrito de juventude, relativamente falando, aliás retomado num outro artigo publicado em inglês dois anos depois, com um título sugestivo: «The mystery of Columbus» (25). Sucede porém que A. Cortesão o incluiu na colectânea de Esparsos que deu à estampa em Coimbra em 1974 (26). Quer dizer que quase quarenta anos depois, e não obstante tudo o que fora entretanto dito em contrário, continuava convencido da justeza de uma tese que praticamente era então defendida apenas por seu irmão, se considerarmos somente os historiadores dos descobrimentos de maior renome.
A talhe de foice, convém acrescentar que não nos interessa aqui retomar um assunto que muito recentemente voltou à baila: o da nacionalidade portuguesa (de entre as várias que são reclamadas...) de Cristóvão Colombo. Surpreendentemente, a suposta cidadania portuguesa de Colombo e a sua qualidade de agente secreto de D. João II têm sido por vezes consideradas como uma espécie de relação de causa e efeito. E surpreendentemente porque, como é óbvio, nada tem a ver uma coisa com a outra: não é a nacionalidade que traça o destino da fidelidade dos espiões, sejam estes verdadeiros ou falsos. Colombo poderia perfeitamente ser italiano, maiorquino ou outra coisa qualquer, e, se fosse esse o caso, estar ao serviço do Príncipe Perfeito.
O problema em causa tem a ver com um aparente paradoxo: a convivência de Colombo com os meios náuticos portugueses durante largos anos, e as convicções geográficas do genovês, que indubitavelmente estavam aquém do que se pensava naqueles meios.
Não é novidade alguma que Colombo laborou no que é amiúde chamado o erro mais fecundo da história. Supondo que o valor do grau de meridiano terrestre era de cerca de 14 léguas e da mesma forma que o cartógrafo Paolo Toscanelli acertava ao propor a distância de 130º entre a Europa e a Ásia, o que em Portugal se sabia no seguimento de uma consulta que lhe fora feita a pedido de D. Afonso V, o genovês foi por força levado a pensar que esse era o caminho mais curto para o Oriente (erro a que acrescentou um outro, o do valor que tomou para a milha marítima). Ora o certo é que a marinharia portuguesa atribuía ao grau do meridiano valores mais próximos da realidade: 16 2/3 léguas, normalmente, 17,5 léguas nos finais do século XV, e Duarte Pacheco Pereira aproximou-se ainda mais com as 18 léguas que avança no Esmeraldo de Situ Orbis (27), obra que redigiu entre 1505 e 1508 segundo Joaquim Barradas de Carvalho.
O valor de 17,5 léguas vulgarizou-se rapidamente, mas convém aqui deixar claro que o proposto por Duarte Pacheco não encontrou eco em Portugal senão na Arte de Navegar de Manuel Pimentel (1712) (28). Apesar de tudo compreendem-se as diferenças em causa em relação aos c. de 111 kms. do grau de meridiano, correspondentes a 18,75 léguas marítimas portuguesas.
A presença de Jaime de Maiorca em Portugal e o início da cartografia portuguesa c. 1445, de acordo com Charles Verlinden, não podiam por outro lado deixar de fazer crer aos mareantes portugueses que a distância de 130º a que aludimos atrás estava muito aquém dos 220º que efectivamente separam a Europa e a Ásia pelo ocidente. Tudo junto, portanto, só pode ter uma explicação ainda de acordo com os defensores do sigilo: Colombo foi deliberadamente induzido em erro quanto àquilo que a coroa portuguesa efectivamente pensava em relação ao caminho marítimo para o Oriente (enunciado que é contraditório com a ideia de que seria um espião português; nesse caso, não faria sentido pensar-se que tivesse sido enganado).
Não cremos que se possa aceitar que Colombo pudesse ter deixado de saber o que pensavam os marinheiros portugueses a este respeito. Quer porque viajou com eles para a costa de África, quer por via do acesso aos papéis de um dos homens que navegou no tempo do infante D. Henrique: Bartolomeu Perestrelo, primeiro donatário da ilha de Porto Santo, cuja filha Filipa veio a ser mulher do genovês e mãe de seu filho Diogo. Quer ainda porque um homem interessado nas coisas do mar teve de certeza muitas oportunidades de reforçar esses contactos durante o tempo em que esteve estabelecido em Lisboa como cartógrafo, juntamente com seu irmão Bartolomeu.
Seria possível apesar de tudo que Colombo não se tivesse apercebido do erro em que laborava, ao tomar conhecimento das concepções geográficas então em curso nos meios náuticos ligados às navegações portuguesas? Esta questão crucial é em certo sentido uma falsa questão. E isto por várias razões.
Em primeiro lugar dificilmente se pode pôr o problema de existirem concomitantemente concepções geográficas «certas» e «erradas». É claro que essa classificação é hoje, para nós, um exercício de estilo fácil, face aos nossos próprios conhecimentos actuais. Mas nos finais do século XV corriam paralelamente e com créditos não necessariamente muito diferentes concepções que misturavam ou separavam a geografia herdada da Antiguidade (ou as geografias, para sermos exactos), a geografia imaginária da Idade Média, como a expendida Livros de Maravilhas, ou a geografia (ainda de resultados muito parcelares) emergente do contacto dos Portugueses com os territórios com que iam tomando conhecimento, na costa africana ou nas ilhas atlânticas.
O facto de Colombo dar crédito ao italiano Toscanelli – que por seu turno creditava a Marco Polo, como o fazia também o genovês – nada tinha de extraordinário, e constituía uma opção pacífica, no sentido em que era perfeitamente legítima, no quadro do saber geográfico da época. A construção da visão do mundo que tornaria evidente o erro de Colombo era ainda uma tarefa que ensaiava os primeiros passos.
E esses passos tão pouco foram imediatos. Vejamos apenas dois exemplos, tirados da náutica portuguesa, que ilustram os embaraços e dificuldades bem próprios desta matéria.
O primeiro caso que podemos invocar é o da questão das Molucas. Afirmada a necessidade de prolongar o semi-meridiano de Tordesilhas para resolver o problema da soberania deste rico centro produtor de cravo, que tanto interessava a qualquer das coroas ibéricas, os diplomatas de D. João III conduziram as negociações com extremo tacto, porquanto era convicção dominante entre os peritos ao serviço do rei português que as Molucas pertenciam de facto a Carlos V. Como não havia processo de determinar a longitude no mar com o rigor necessário para resolver a pendência sem margem para dúvidas (o método adequado só viria a ser testado com sucesso na segunda metade do século XVIII), D. João III acabou por pagar uma soma fabulosa pela soberania de um território que na realidade lhe pertencia de facto, segundo o critério de Tordesilhas alargado para o Oriente. Convencido, quase seguramente, de que estava a fazer um bom negócio (29).
O segundo exemplo é o do padre Fernando Oliveira: este teórico da marinharia (que foi também piloto de galés, teórico de construção naval e cartógrafo) propôs 20 léguas para o grau de meridiano numa obra que redigiu na primeira versão em 1570, e que se conserva manuscrita. E fê-lo, deve acrescentar-se, com uma notável virulência contra os pilotos ou matemáticos que usavam ou defendiam que se usasse um valor inferior, quando as 20 léguas marítimas portuguesas acusavam em relação ao valor real exactamente a mesma margem de erro que as 17,5 léguas então em curso, só que desta vez por excesso (30).
Quer dizer: nenhuma destas questões era propriamente um dado que se pudesse dar por adquirido urbi et orbi. A opção de Colombo estava bem aquém daquilo que lhe seria possível pensar se acreditasse na prática de navegação dos pilotos portugueses (que aliás estava longe de ser unânime: muitos continuaram a empregar o módulo de 16 2/3 léguas enquanto outros se serviam do de 17,5). Simplesmente não o fez. Preferiu insistir no resultado que lhe aparecia em consequência dos estudos profundos a que se dedicou, mas não cremos, de modo algum, que pudesse estar completamente alheado do que se passava a bordo dos navios de D. João II. Mesmo que disso tivesse um conhecimento imperfeito, é duvidoso que abandonasse as conclusões que foi construindo com o correr dos anos, para mais alimentadas como eram por um carácter marcado por uma notável pertinácia; como é inquestionável, e o demonstra todo o processo negocial que culminou com as capitulações assinadas em Espanha.
A permanência de Colombo em Portugal é concomitante com o desenvolvimento dos preliminares do projecto de alcançar a Índia que D. João II perseguia com uma tenacidade não menos notável. E desde o retorno de Bartolomeu Dias, em finais de 1488, a única questão que se punha ao monarca português era a reunião das condições necessárias para garantir o sucesso do seu plano. Reside aqui, de resto, a explicação para o hiato que referimos atrás: seria um contra-senso enviar uma armada para a Índia logo depois da viagem de Dias, sem estarem devidamente precatadas essas condições técnicas (o tipo de navios empregues, como vimos, foi diferente, e as naus de Vasco da Gama foram construídas expressamente para a viagem, como no-lo diz o cronista da Índia Gaspar Correia (31)), políticas e diplomáticas.
Por outro lado a viagem de Bartolomeu Dias não era em si suficiente. Enquanto planeava as viagens marítimas D. João II enviava emissários por terra a saber notícias do Oriente. Os dois primeiros, frei António de Lisboa e Pêro de Montarroio, fracassaram na missão que lhes fora confiada por não dominarem a língua árabe. Esse estranho erro não foi cometido com Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, que saíram de Lisboa em 1487, por terra, portanto no mesmo ano em que Dias zarpava em busca do extremo sul do continente africano.
Foi só em 1492, ou talvez no ano seguinte, que D. João II recebeu pela mão de mestre José, um seu enviado que encontrara Pêro da Covilhã no Cairo (Afonso de Paiva faleceu entretanto), o circunstanciado relato que aquele enviou ao rei, segundo se supõe com boas razões, dando conta das viagens que fizera entretanto pelo Oriente (32).
Só nessa altura o Príncipe Perfeito tinha então as notícias de que carecia para poder enviar uma armada à Índia. É porém sabido que o rumo dos acontecimentos impediu, por vários motivos diferentes, que esse desiderato fosse cumprido desde logo. Um deles precipitou-se quase de imediato.
A 4 de Março de 1493 a frota de Cristóvão Colombo, vinda da viagem de descobrimento da América, entrava no rio Tejo. D. João II encontrava-se perto de Santarém, onde o mandou ir ter, para afirmar ao genovês que as terras por si descobertas se encontravam no senhorio da Guiné, pertença do rei de Portugal pela letra do tratado das Alcáçovas firmado em 1479.
Rui de Pina ocupou-se do episódio no capítulo LXVI da Crónica de D. João II (33). Estamos em crer que as parcas linhas que dedicou ao assunto são muito mais eloquentes do que parecem a uma primeira leitura.
Tanto quanto Colombo estava convencido que chegara ao Cataio, estava D. João ciente de que o navegador nem chegara lá perto. Isso parece-nos evidente, sobretudo porque é de calcular que as recentes novidades de Pêro da Covilhã comprovassem a crença do monarca português na justeza de que o caminho que procurava era aquele pelo qual mandava os seus navegadores. Não obstante, segundo Rui de Pina, o rei teria lamentado não ter dado ouvidos a Colombo quando ele se propusera, havia anos, fazer esta mesma viagem ao seu serviço. O que é muito pouco provável.
Efectivamente o cronista dá-nos uma ideia do que pode ter sido a audiência que o rei concedeu ao involuntário descobridor da América. Seguro do seu êxito «o dito Almirante, por ser de sua condição um pouco alevantado, e no recontamento de suas coisas, excedia sempre os termos da verdade, fez esta coisa, em ouro, prata, e riquezas muito maior do que era» (34).
Se em relação às miríficas riquezas que Colombo esperava encontrar no seu Cataio a viagem fora de facto um fracasso completo, o almirante não podia deixar de afirmar o contrário, que sem dúvida esperava confirmar posteriormente. Certo da razão que afirmara contra todos com espantosa pertinácia, terá usado mesmo de alguma insolência para com o rei de Portugal (numa atitude que tinha o seu quê de político, sem dúvida, pois não lhe era permitida, nas circunstâncias em que se encontrava, a mínima hesitação); e este foi instado por alguns dos seus cortesãos a pura e simplesmente eliminar o genovês (35).
D. João II, que dirigiu os negócios internos e externos do país com mão de ferro, não teria evidentemente qualquer pejo em o fazer se isso fosse a medida mais aconselhável. Pelo contrário, não só não deu ouvidos aos seus conselheiros como deixou Colombo ir em paz. Nunca o faria se visse posto em causa o plano que arquitectava madura e longamente, para mais numa altura em que estava à beira do sucesso.
Voltemos um pouco atrás no curso dos acontecimentos, e não nos esqueçamos que Colombo estava em Lisboa quando Bartolomeu Dias voltou em 1488 da viagem em que dobrou o cabo da Boa Esperança. Nesse mesmo ano voltara a insistir com D. João II para que este apoiasse o empreendimento que planeava. O rei garantiu-lhe nessa ocasião, como lhe fora pedido, que podia voltar a Lisboa sem ser molestado (Colombo temia ser preso caso entrasse na capital portuguesa, por razões que desconhecemos), negando-lhe porém e novamente o seu apoio.
Dois factos são indesmentíveis. Por um lado a D. João II não moveu qualquer animosidade contra o genovês, nem antes nem depois da primeira viagem deste. Por outro, também não se desinteressou das viagens a ocidente, que estavam longe de lhe ser propostas pela primeira vez. O monarca não teve qualquer pejo em avalizar o pedido feito nesse sentido pelo flamengo Fernão de Ulmo (nome porque ficou conhecido em Portugal), que se associou depois a João Afonso do Estreito, simplesmente porque neste caso não estava envolvido o financiamento da expedição pela coroa – bem ao contrário de Colombo, cujas exigências eram tidas por exorbitantes.
Tudo isto reflecte o interesse, ou, mais precisamente, o desinteresse de D. João II pelo caminho marítimo do ocidente. No fundo, e numa só palavra, Colombo era inofensivo para os seus propósitos. Por isso lhe garantiu o acesso a Lisboa em 1488, por isso não obstaculizou a sua saída em 1493.
Não há neste processo sombra de sigilo de Estado: repare-se, facto que por vezes é convenientemente esquecido, que o rei não teve problemas em autorizar um estrangeiro a navegar para ocidente (em relação ao qual ninguém se lembrou até agora de dizer que fosse um espião). Porque já que não havia lugar a qualquer investimento só podia ganhar com o negócio caso a viagem do flamengo resultasse em algo de concreto.
Confrontavam-se portanto duas concepções geográficas bem distintas: a do navegador genovês ao serviço da Espanha e a do monarca português, baseado este nos conhecimentos acumulados pelos anos de experiência das navegações efectuadas e das informações que ia recolhendo (e que permitiram aos seus conselheiros Diogo Ortiz, mestre José e mestre Rodrigo concluir pela não viabilidade do plano colombino quando o ouviram pela boca do próprio e sobre ele se pronunciaram a pedido do rei), e aquele numa reflexão profunda sobre as autoridades que creditou. No quadro dos conhecimentos geográficos do século XV, como dissemos atrás, nada mais natural que a verificação de duas concepções tão opostas, que um e outro perseguiram com idêntica convicção. E a cada um couberam os méritos devidos por isso mesmo.
A primeira viagem de Colombo teve pelo menos o efeito de obrigar a uma redefinição de zonas de influência, desactualizada que estava doravante o tratado das Alcáçovas em face da descoberta da América. Em 1494, ao assinarem o tratado de Tordesilhas, tanto D. João II com Fernando e Isabel obtinham exactamente aquilo que queriam: o primeiro a soberania sobre os mares que haviam de levar as naus portuguesas à Índia, como já sabia de ciência segura; os segundos, a soberania de um novo continente cujas potencialidades se iriam revelar mais tarde (36).
É indubitável que D. João II soube anular a interferência da arbitragem parcial de Alexandre VI (e foi o próprio Jerónimo Zurita, o insuspeito cronista de Fernando o Católico, que a classificou assim no tomo V dos Anales de la Corona de Aragon (37)), ao propor que a linha divisória de Tordesilhas passasse 370 léguas a ocidente do arquipélago de Cabo Verde, e não a 100, como queria o Papa. Esta vitória diplomática encontrou eco do outro lado: a Fernando e Isabel interessava por igual que o diferendo se resolvesse, e daí que concordassem com a ultrapassagem de uma intervenção papal que lhes era favorável, e uma vez que as 370 léguas pedidas por seu primo não afectavam a soberania das novas conquistas.
Foi porém menos afortunado em relação ao termo do grande objectivo que norteou o seu reinado e teria depois consequências tão profundas para a história da Europa, a partir de então voltada definitivamente em direcção a um Oriente longínquo e ignorado: tolhido pelas inúmeras dificuldades que a política interna do reino lhe foi levantando, como a oposição da grande nobreza ou o falhanço da união ibérica, desvanecida em fumo com a morte do herdeiro da coroa D. Afonso, vitimado por um acidente ocorrido pouco depois do casamento com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, a par dos problemas que a gestão do nascente império lhe iam levantando, esperando ainda pelas notícias dos seus viajantes e vendo-se logo depois obrigado a batalhar pelas vantagens diplomáticas sem as quais pouco tinha de seguro, D. João nunca viu partir as naus da Índia. Morreu em 1495, minado por uma doença implacável que o vergou antes de ver cumprida a viagem cuja realização perseguiu tão tenazmente e que preparou quase até ao último momento.
Onze anos depois, em 1506, na miséria e desacreditado, morria dolorosamente, tal como D. João, um homem tão visionário como ele – e foram talvez únicos no seu tempo. Sem nunca ter alcançado as riquezas do Cataio, afirmando até ao último momento que no fundo estava certo (porventura menos convencido que obrigado a manter-se coerente consigo próprio, contra toda a evidência), Colombo abriu as portas do Ocidente mas não viu também cumprido o sonho que foi a mola vital de toda uma vida.
Numa daquelas ironias em que é tão fértil, o destino não permitiu que qualquer dos dois lograsse o sucesso que perseguiram obstinadamente. Mas deixou que, cada um à sua maneira, o príncipe de Portugal e o almirante de Génova forjassem uma realidade que doravante era em tudo diferente daquilo que a Europa podia suspeitar quando anos antes dois jovens de vontade férrea se lançaram à conquista de um mundo que transformaram completamente.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.