terça-feira, 1 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino


FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 5-10.



Texto Integral




REFLEXÕES PRELIMINARES


Há mais de um ano que procuramos definir a verdadeira posição de Cristóvão Colombo no meio do movimento marítimo do século XV e as suas relações com Portugal, onde casou e abriu caminho para as glórias, que o esperavam no Novo Mundo.
Este tema, hoje palpitante do maior interesse e oportunidade, seduziu-nos mais pelo desejo de formar um juízo seguro acerca dos debates sobre ele levantados, do que pela mira pretensiosa de vir um dia a decidir de qual dos lados contendores está a razão e a verdade.
Ainda, quando o fruto das nossas pesquisas e reflexões chegasse a ser tão completo, que justificasse uma tal presunção, faltava o convencer-nos de que ele lograria melhor sorte, que os estudos até hoje elaborados por penas de autoridade muito superior.
Alguns desses estudos, apreciáveis por sua larga crítica e investigação, embora não determinem o perfil rigoroso de Colombo, levam-nos, todavia, desde já a conclusões importantes, constituindo o alicerce indispensável a um futuro edifício, o norte consciencioso duma nova ordem de trabalhos interessantes e proveitosos.
Mas o que lhes aconteceu? O mesmo que a todas as tentativas de rectificação de um ponto ou determinando vulto da história de qualquer país; o mesmo que acontecerá, quando a investigação der por concluída a tarefa encetada acerca do famigerado genovês, rematando os seus esforços de hoje com as triunfais descobertas de amanhã, sem todavia lhe regatear o que tem de justo a sua fama de cosmógrafo e de navegador.
Na presente época, o verdadeiro historiador trabalha pela simples questão de consciência pessoal e de gosto artístico. Quer dizer, trabalha como toda a gente, cujos horizontes de actividade e de vistas morais não vão além das paredes de uma oficina, onde recebe a salário e passa umas horas de distracção íntima, ou de um gabinete de curioso, onde cria um mundo seu, povoado de alegrias e de visões de glória.
Mais nada. O alcance cívico da sua obra, a propriedade fecundante do seu espírito dizimado às parcelas, a justa avaliação da sua luta intelectual, em que para produzir duas linhas de verdade tem de folhear muitas vezes dezenas de páginas de mentira, revolver e joeirar contos e contos da tradicional lareira, tudo isso, que lhe constituiria a ambicionada palma da sua missão humanitária, é coisa vã que apenas se encontra em fórmulas amáveis e nas exterioridades convenientes, sob que a sociedade disfarça a sua indiferença por quem trabalha e a sua triste noção do bem e da justiça.
Para que o historiador se enganasse era necessário desconhecer o meio, em que vive e trabalha. E o conhecimento deste é-lhe tão indispensável, como o daquele que vai fazer reviver, se preferir pôr-se em contacto directo com o espírito popular a ocupar somente um lugar de honra nas bibliotecas dos sábios.
Assim, o trabalho de coleccionação e assimilação tão reconhecidamente improbo e difícil torna-se às vezes pouco diante da forma de apresentação, querendo-se conciliar a verdade com o sabor literário e as ideias da época.
Daqui a diferença na esfera de acção entre a obra do que se internou nos claustros e arquivos para viver na mais estreita identificação com o passado, ressurgido por ele numa admirável fidelidade de forma e palpitação de vida, e a do que não saiu do seu tempo para burilá-lo segundo o gosto, as crenças, e até o idealismo do meio social que o há-de ler.
O que escreveu, isolado do mundo, entre trincheiras de cantaria tumular, fez uma reprodução artística que poucos estão no caso de admirar e muitos menos ainda no de compreender; o que esboçou tão-somente a história sem perder de vista o revolutear caprichoso da sua época conseguiu sem dúvida alguma uma área de simpatias e de influência educativa incomparavelmente superior.
Porque o facto é este. Nenhuma, ou poucas fases moralmente doentias têm atravessado a nossa sociedade, como a dos últimos anos, devido ao excesso de desenvolvimento do sistema nervoso sobre o muscular. Até na morte voluntária se procura com aplauso geral o romance que não encontrámos na dura positividade da vida, senão filtrado através das páginas fantasiosas, que se converteram num artigo indispensável de passadio moral.
Nestas condições, a que resultado pode visar um trabalho de rectificação histórica, esfriado por documentos, traçado a esquadro, imposto com a voz austera e catedrática, que resulta da convicção da verdade e da indignação pela mentira?
Quando o espírito popular, pela sua morbidez crescente, se torna cada vez mais sequioso e insaciável de lendas e ficções, quem ousará com esperanças de vitória destruir-lhe, ainda por cima, parte do seu minguado repasto?
Aquele, que o pretenda, tem de contar ao certo com duas coisas: a suspeita ofensiva das intenções que o animaram e a necessidade de corroborar oficialmente até a mínima circunstância destrutiva da lenda, que se abraçou e parafraseou sem uma prova, um documento, um testemunho, sequer!
E, quando o consiga, a sociedade responder-lhe-á: «muito bem, parece que não mentiste; mas guarda para ti a verdade que ninguém te pediu, que eu prefiro a falsa tradição, que me legaram os bons velhos.»
Com efeito, temos visto quase sempre a lenda substituída pela lenda, no domínio da tradição registada nos escritos antigos e modernos: mas raras vezes a lenda substituída pela história, e nunca esta com a voga corrente e entusiástica da primeira.
Há páginas de conscienciosa reivindicação e de justiça póstuma, mas que representam apenas uma declaração de voto, com mero valor pessoal, cativo à cotação discricionária do optimismo ou do pessimismo.
As próprias correcções de efemérides, que pela mudança de um algarismo não alterariam a essência do facto, como acontece em diversos casos, raríssimas vezes têm conseguido vingar contra a intransigência apaixonada, com que se abraça por completo a transmissão oral ou escrita dos velhos fazedores de historietas.


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Ao trabalho que temos entre mãos não agouramos melhor sorte do que a dos publicados até hoje sobre o mesmo assunto. Por enquanto, pouco mais nos termos adiantado a eles, a não ser na confirmação de alguns pontos e nas demarcações dos nossos mares e colónias com os de Castela, no tempo de Cristóvão Colombo e no de seu filho D. Diogo.
Sacrificamos, porém, a ocasião momentosa, que se nos oferecia agora para publicar essas notas, a obrigação de não terminá-las precipitadamente, e vamos apenas destacar a parte, que se refere aos Monizes e Perestrelos, de cuja aliança proveio D. Filipa Moniz de Melo, mulher do ilustre navegador.
Anima-nos a isso um sentimento patriótico e o aproveitar o ensejo de nos associarmos às alegrias do povo espanhol de ambos os hemisférios, ao qual nos prendem, como irmãos, tantos laços étnicos e consanguíneos.
Se não podemos orgulhar-nos, como a Espanha, de nos haver associado a Cristóvão Colombo na sua cruzada ao novo mundo; Portugal, embora lhe ponham ainda dúvidas no seu glorioso desbravamento de todos os caminhos marítimos, acha-se intimamente ligado no melhor do seu sangue ao homem que vai ter, ao cabo de quatro séculos de largo registo histórico, a mais ruidosa e estimulante apoteose dos tempos modernos.
A festa em honra de Colombo, marido de D. Filipa Moniz de Melo, além de revestir um carácter verdadeiramente universal, deve também causar aos portugueses o santo e íntimo regozijo de uma festa de família.
Lisboa, Julho de 1892.


N. Florentino

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