sexta-feira, 18 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (4)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 39-48.



Texto Integral






III

A ILHA DE PORTO SANTO E A SUA COLONIZAÇÃO.
TRABALHOS E SACRIFÍCIOS DO PRIMEIRO DONATÁRIO DESTA ILHA.
BARTOLOMEU PERESTRELO: SUA VIDA ATRIBULADA, ALIANÇAS MATRIMONIAIS, MORTE PREMATURA E DESCENDÊNCIA QUE DEIXOU.





EGUNDO a crónica de Azurara, sub­sidiada por outras obras, pouco tem­po se demorou Bartolomeu Perestrelo na ilha de Porto Santo, para cuja colonização ele partira em com­panhia de diversos indivíduos, emba­lados dos mais fagueiros sonhos de fortuna.
O desengano, que o moço Bartolomeu recebeu, visitando os seus futuros domínios, foi o mesmo em que caíram muitos outros, tanto nas ilhas como no continente, aferindo a largueza da munificência régia apenas pela decantada extensão do território, pelas no­tícias imaginosas da sua fertilidade e pelo nome pom­poso do senhorio. Só conheciam o valor do que haviam impetrado, quando os encargos, a que se comprometeram, ascendendo a verba muito superior ao rendi­mento local, obrigavam-nos a declinar a exploração por parcelas a troco de rendas insignificantes, ou a rela­xá-las ao abandono, de que ainda recentemente se encontravam copiosos vestígios por muitos pontos do país. Mesmo hoje, muita gente quando vê a lista de doações, antigamente havidas pelos que prestavam serviços públicos, e segue o inventário descritivo de cada uma delas, não sabe qual admirar mais — se a liberalidade perdulária do doador, se a fortuna fabulosa do donatário. Entretanto, por livros de receita e despesa, róis e outros documentos da época, e com os meios científicos, de que actualmente dispomos para valorizar essas mercês em relação ao capital de exploração e ao rendimento agrícola e industrial, é fácil conhecer quanto tem de hiperbólicas na maior parte dos casos as concepções dos interesses auferidos por aqueles, cujo trabalho se remunerava com senhorios, capitanias, etc.


Porto Santo - Zimbralinhos
(Autor: Marcial Fernandes)

Levado pela sugestão das apregoadas bondades da ilha descoberta, Bartolomeu não soube o que pediu, talvez ao contrario de Zarco e de Tristão, cuja segunda viagem mais racionalmente se explica pelo propósito de prosseguirem na empresa começada, depois de deitar os colonos em Porto Santo, ou pelo menos, sondarem e reconhecerem aquelas paragens do Atlântico, do que de se enterrarem numa ilha, cuja área e condições geológicas, embora apreciadas de relance, não os deveriam ter seduzido, como se escreveu.
O descobrimento ([1]) imediato da Madeira, que foi dividida por ambos, e na qual se fixaram como um termo satisfatório das suas excursões marítimas, cujo alvo reconhecido eram as costas da Guiné, ajuda-nos em reflexões diversas das que restritamente nos inspira o texto dos cronistas.
Bartolomeu não tardou a conhecer, que a imaginação o traíra, e que dera excessivas largas a sua credulidade. O confronto de Porto Santo e da nova ilha encontrada por Zarco e Tristão, incomparavelmente superior à primeira, pelo seu aspecto atraente e pela prometedora valentia da vegetação, acabou de o desanimar. ([2])
Voltou pois ao reino mais provavelmente depois do encontro da Madeira. A causa desta retirada e simultaneamente da partida dos dois outros companheiros para a segunda ilha, é atribuída a uma praga daninha de coelhos, que se desenvolveu na ilha, por nela soltarem uma coelha com crias, havidas durante a viagem. No ano seguinte, se é que mediou um ano entre a ida e a volta de Bartolomeu, já matarom muy muytos, nom fazendo porem mingua para os estragos, que esmoreciam os colonos, inutilizando-lhes os trabalhos agrícolas.

Coelho Bravo
(Oryctolagus Cuniculus Algirus)

Este extraordinário poder de procriação, diante do qual a zoologia se curva impotente para explicá-lo, a nós, profano na ciência, não nos causa maior assombro. Os nossos antepassados tinham uma ingenuidade de crer, sem ver nem discutir, que, sob o ponto de vista da higiene espiritual, é simplesmente para causar inveja nestes tempos atribulados de malícia e de suspeição.
A história dos coelhos, que calou piamente no ânimo dessa boa gente, hoje não satisfaz. Melhor e mais verosímil fará que nos descrevessem a ilha de Porto Santo com o seu solo areento, impróprio para muitos géneros de cultura e sobre tudo para a indispensável arborização, a sua falta de água potável, etc. a impressão desagradável, que causaria esse ermo a um rapaz muito novo, costumado à vida da corte e que nem ao menos levara uma companheira, um dos requisitas essenciais ao verdadeiro colono e um anódino contra a nostalgia da pátria, e outras coisas idênticas, que seriam mais aceitáveis e incontroversas, e menos pueris, do que uma praga de coelhos desenvolvida num ano, por uma ninhada ainda de leite.
Encarada logicamente a questão por aquele lado é que vemos Bartolomeu Perestrelo regressar ao reino e alguns anos depois partir novamente na qualidade de provedor de Porto Santo, onde então com maiores probabilidades se encontravam bastante multiplicados os temíveis roedores.
Pode ser que para isso ele houvesse reconsiderado em vista de circunstâncias imperiosas, tais como a de uma boa notícia dos trabalhos ali continuados pelos seus companheiros, do proporcionamento de capital humana e monetário mais animadores do que os que levou na sua primeira viagem, e, finalmente, a de ter contraído matrimónio com D. Margarida Martins, tomando em seguida a resolução de tratar do futuro a todo o transe.
Porto Santo, com a vizinhança da Madeira que começou a prosperar a olhos vistos, tornou-se também mais atraente e acompanhada, encontrando à mão muitos recursos, que as suas ingratas condições locais não proporcionavam desde logo. Nem mesmo pelo decorrer do tempo as transformações e correctivos, por que passaram os domínios de Bartolomeu, graças a um insano trabalho, que o fez baquear bem cedo, e a sacrifícios pecuniários pouco mais do que inúteis, nunca a ilha se extremou por uma linha de autonomia, económica e etnográfica, que provasse os seus suficientes progressos materiais e morais; quanto mais nos primeiros anos da sua colonização.
A povoação da Madeira não foi, por certo, alheia ao concurso de causas, que determinaram Bartolomeu Perestrelo a sair novamente de Lisboa e a demandar Porto Santo. Uma das provas é a pouca estabilidade, que ele tinha nesta ilha, onde fixara residência, ou, melhor, estabelecera casa.
Partido para ali com sua primeira mulher, entrevemo-lo não poucas vezes no Machico, no Funchal e no reino, a tratar dos seus interesses locais, desenvolvendo uma actividade prodigiosa em angariar materiais agrícolas, atrair a emigração, proporcionando-lhe os instrumentos do trabalho, e alcançar do cofre real algumas mercês rendosas, que o ajudassem no oneroso custeio da beneficiação de Porto Santo.
No maior ardor das suas lides, um doloroso acontecimento veio enlutar Bartolomeu Perestrelo, a quem o seu negro horóscopo parecia poupar momentaneamente para surpreende-lo depois mais implacável aos primeiros vislumbres de ventura.
Por um dos documentos, sobre que estamos a trabalhar, conclui-se que D. Margarida Martins, sua mulher, pouco viveu além 1431. O último vestígio, que possuímos, da vida desta senhora é uma carta de D. João I, de 8 de Junho desse ano, dando a ela e a seu marido umas casas de foro, na Rua Nova, junto à Porta da Erva.
Deste casamento não houve filhos, que nos conste passando Bartolomeu a segundas núpcias com D. Brites Furtado de Mendonça, da bem conhecida família deste apelido, que também ocupa um lugar distinto na história do arquipélago.
Do segundo matrimónio conhecem-se três filhas, todas casadas com homens importantes. A primeira D. Catarina Furtado de Mendonça, foi mulher de Mem Rodrigues de Vasconcelos, comendador do Seixo; a segunda, D. Filipa de Mendonça Furtado, desposou-se com João Teixeira, ([3]) filho terceiro de Tristão Vaz, primeiro capitão donatário da jurisdição de Machico; a terceira, D. Izeu Perestrelo, ligou os seus destinos a Pedro Correia da Cunha, ([4]) capitão donatário da ilha Graciosa, e ao qual teremos mais adiante de referirmo-nos.
Enviuvando segunda vez, Bartolomeu Perestrelo, que ainda estava um homem relativamente novo, passou a terceiras núpcias com D. Isabel Moniz, filha de Vasco Martins Moniz, que a esse tempo vivia em Machico, com toda a sua grande casa, como se viu quando tratámos dos Monizes.
Esta nova aliança, a mais distinta e directamente vinculada ao nosso fito histórico, revela de certa forma a importância moral de Bartolomeu e a confiança, que inspiravam a seriedade do seu trato e o seu amor ao trabalho. Só quem conhece particularmente pela velha papelada a fidalguia orgulhosa dos Monizes, disputada em aliança pelas melhores casas da Madeira e do continente é que pode avaliar a segurança convicta com que traçamos esta nota biográfica.
D. Isabel, a julgar pela idade de seus irmãos, teria quando muito 18 anos, ao deixar a casa paterna, onde a rodeavam todas as comodidades possíveis, para seguir com seu marido para a ilha do Porto Santo, sendo-lhe companheira devotada durante os poucos anos que ele ainda viveu.
Dissemos algures que Bartolomeu não soube o que pedira, nem tão pouco em quanto estipulara o prémio dos seus serviços ao infante D. João. Com o seu génio activo e empreender julgou que transformaria os penhascos e areias de Porto Santo em húmus dum pomar, que lhe desse frutos e sombra na velhice. Enganou-se como tantos outros, que se aniquilaram obscuramente a fecundar alguns retalhos do país, perdidos por esse oceano, sem um dia de gozo na vida nem um pedaço de pão para a orfandade dos filhos.
Quanta gente não terá ligado a sua memória a ideia típica, corrente, desses feudatários, estatelados ociosamente em rambotins de nababos, acenando com ouro a todas as voluptuosidades, que pode arquitectar uma grande imaginação, servida pelo temperamento mais sensual?
Infeliz Bartolomeu Perestrelo! Infeliz nas lutas da vida e na maneira pouco respeitosa, por que a história lhe recolheu o nome. A glória de haver encontrado casualmente um monte emerso no meio do mar foi sempre tudo, mesmo em face dum labutar atlético de perto de 30 anos para revolver-lhe as entranhas, corrigi-lo, sangrar-lhe as veias profundas, fecundá-lo com o suor e muitas vezes com o próprio sangue.
E esta estranha concepção dos meios mais conducentes à glorificação individual exemplifica-se cruamente na sombra histórica do donatário de Porto Santo. Têm-se passado anos de teimosia inútil em deletrear das páginas brumosas dos cronistas uma palavra, uma sílaba, que robusteçam a suposição de que ele foi um dos que atravessaram pela primeira vez as cento e tantas léguas de mar, que vão de Lisboa ao arquipélago da Madeira.
Para nobilitá-lo, inventou-se que ele veio de Espanha para Portugal em 1428 com a mulher de D. Duarte, e logo abaixo que ele foi companheiro de Zarco e de Tristão no descobrimento de Porto Santo em 1418 (!); quando o que há de mais seguro a respeito da sua nobreza é a justificação feita por seu pai Filippone Palestrello em 1399. Para glorificá-lo como homem do mar chega-se até fantasiar manuscritos que deixou e conselhos que deu a seu genro Cristóvão Colombo, estando provado que ele nunca conheceu o homem, com quem havia de casar a sua filhinha Filipa, que ficou órfã de pai aos 5 anos de idade.
Em suma, para que Bartolomeu Perestrelo tivesse duas linhas de panegírico, mais apetecido pelos seus sucessores do que por ele, atento o seu viver atribulado, era necessário reconhecê-lo por nobre e principalmente caracterizá-lo como navegador, segundo a moda predominante da época em que viveu.
Porfiou-se em construir-lhe na areia um pedestal de glórias, ao passo que nem um olhar se deitou para a sua existência cheia de desgostos e trabalhos, e cuja resignação nos primeiros, constância e honradez nos segundos, são títulos muito mais seguros de direito à nossa admiração, do que o feito casual que se procura atribuir-lhe.


Porto Santo

Ao donatário de Porto Santo não pertence empunhar a palma de haver descoberto a sua ilha; mas assenta-lhe legitimamente na cabeça o resplendor de mártir do trabalho, uma das consagrações sociais mais valiosas de todos os tempos.
A morte veio colhê-lo no seu posto, por volta de 1457, tendo ele pouco mais de 50 anos de idade e deixando a família em precárias condições económicas, pois que a sua capitania absorvera-lhe tudo desde os dotes de suas mulheres e benefícios, que por diversas vias alcançou, à própria saúde sem que a tanto capital ali enterrado correspondesse um rendimento sofrível para a manutenção da viúva e de seus dois filhos, Bartolomeu e Filipa, órfãos de pai ainda bem tenra idade.
Faleceu Bartolomeu Perestrelo na vila da Baleeira, da ilha do Porto Santo, e pelo que se apura de elementos mais fidedignos parece que ficou sepultado na igreja paroquial de Nossa Senhora da Piedade.

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[1] Sublinhámos a palavra, porque Azurara conta singelamente, que Tristão e Zarco se passaram do Porto Santo à ilha da Madeira, que se avista em dias claros. Por outro lado, também é de notar que o denso arvoredo, que cobria a última, pela própria respiração vegetal e pela evaporação da humidade sob ele depositada, devia ocasionar prolongadas perturbações atmosféricas, que não permitiriam então avistá-la do Porto Santo, como hoje.
Barros, mais ilustrado do que Azurara, lembra este fenómeno, sem que na essência do facto do descobrimento haja contradição entre ambos. Pelo contrário, explica-no-lo o primeiro, dizendo que se os vapores às vezes se confundiam com nuvens, outras vezes deixavam suspeitar a terra; suspeita confirmada, sobre tudo, pela posição constante e aparecimento do nevoeiro em ocasião de limpidez nos outros pontos do horizonte.
Por conseguinte, a simples passagem duma ilha para a outra tem todos os visos de verdadeira; ou a existência da segunda fosse averiguada do Porto Santo, ou apenas deduzida pela observação judiciosa dos fenómenos atmosféricos. Tê-la-iam suspeitado Zarco e Tristão na sua primeira viagem? Não o sabemos.
O alvoroço da descoberta fê-los voltar logo talvez, como muitos navegadores em casos idênticos, sem ao menos examinarem o achado, que levou saúde e economias ao pobre Bartolomeu, quanto mais perscrutar serenamente o horizonte.
[2] Parece que na sua primeira viagem Bartolomeu Perestrelo levava já a provedoria de Porto Santo, o que de certa forma o prendia à ilha, desvanecendo-lhe qualquer esperança de vir a compartilhar do novo achado, que Zarco e Tristão trataram logo de dividir entre si, tendo o cuidado de definir então melhor as suas garantias de povoadores da Madeira, do que o fizeram a respeito do Porto Santo.
Se estas notas comportassem o tratamento mais desenvolvido de pontos secundários, a camaradagem de Tristão e de Zarco com Bartolomeu seria tema para umas poucas de páginas.
[3] João Teixeira, residente no Machico, foi homem muito conhecido pelas suas proezas de cavaleiro e de grande caçador.
Fez uma coutada no Caniçal, enriquecendo-a com varias espécies de caça desde a javali a perdiz, e as quais em poucos anos se reproduziram de modo a rivalizá-la com as melhores coutadas do continente. Tanto que D. Manuel o soube, escreveu à câmara do Machico recomendando que conservasse zelosamente a coutada do Caniçal, pois que estava informado da sua importância e de que não havia outra igual nem semelhante onde as pessoas reais pudessem montear e caçar, no caso de algum dia irem à ilha.
A carta ficou registada nos livros da mesma câmara.
[4] Pedro Correia da Cunha era filho de Gonçalo Correia, fidalgo abastado no tempo de D. João I e ao qual este monarca, por carta de 22 de Dezembro de 1411, deu em troca da terra de Valadares a da Cunha-a-Velha, donde o filho e os seus descendentes tomaram o apelido de Cunha.