terça-feira, 25 de novembro de 2008

A paleografia dos colombófilos


Um historiador não tem que ser um paleógrafo, mas a proficiência em paleografia é condição essencial para todos os que trabalham com épocas históricas onde predominam os textos manuscritos e não abundam as edições impressas de fontes.
A Paleografia é uma ciência auxiliar da História mas é também um ramo autónomo do conhecimento que tem, entre outras, a História como ciência auxiliar. Tudo depende do objecto e da perspectiva adoptada em cada estudo.

Há uns meses efectuou-se a votação cujo resultado está manifesto aqui ao lado. Perguntava-se de quem era a assinatura acima (João Saraiva) e, à parte de algumas brincadeiras e tentativas de sabotagem, a maioria dos nossos leitores não respondeu por não conseguir ler o texto. Este facto não tem nada de mal, afinal é para isso que servem os paleógrafos e os especialistas em História do período.
Se não é vergonha nenhuma não saber ler textos antigos, e menos ainda não ser capaz de os transcrever correctamente, já é completamente indecoroso fazer-se passar por especialista, afirmando parvoíces como se verdades se tratassem. É o que ocorre, por exemplo, com as assinaturas e com as grafias do nome de Cristóvão Colombo acerca das quais se têm escrito os mais completos disparates, simplesmente porque quem o faz não sabe rigorosamente nada de paleografia. Essas fraudes ficam sideradas perante um sinal diacrítico ou de abreviatura; aliás, não sabem o que é uma abreviatura, e muito menos se é sistemática, vocabular ou especial; não conhecem um só estilo caligráfico que seja; não sabem distinguir suportes, instrumentos de escrita nem tintas.
Mas se a sua incompetência se limitasse à paleografia tal não seria muito grave, pois ainda poderiam socorrer-se dos textos publicados. Só que nem isso lhes vale, porque a sua ignorância estende-se à diplomática, à filologia e à etimologia, tanto no geral como no particular - aliás é mesmo no particular onde mais se manifesta o embuste que são.

(Algumas abreviaturas do nome Cristo usadas do século XIII ao século XVIII in
Eduardo Borges Nunes, Abreviaturas Paleográficas Portuguesas, Lisboa, Faculdade de Letras, 1981)



sábado, 22 de novembro de 2008

Um livro muito didáctico

Hoje passei numa livraria onde um livro me prendeu a atenção por ter como título O Alentejano que Descobriu a América. Obviamente que resolvi dar uma vista de olhos. Para além do título extravagante o livro é também curioso pela sua veia literária, por não ter páginas numeradas e muitas outras palermices.
A veia literária vê-se pela seguinte passagem:
(...) o rapaz prendeu-se de amores (ou de calores, não se sabe) (...) por uma rapariguinha de boas famílias (...) e zás, a moça engravida...

Logo à frente, para se dar um ar de erudição, resolve-se referir a palavra Sefarad em hebraico. Bom, os caracteres são hebraicos, mas escritos da esquerda para a direita o que dá uma palavra que não existe, pelo menos nos meus dicionários. Ou seja, דרפס em vez de ספרד. É óbvio que para quem não percebe nada, é indiferente a posição dos caracteres…

Depois envereda pela história dos judeus portugueses onde o autor revela a sua estrondosa ignorância.
Refere-se que Colombo foi baptizado com o nome Salvador Fernandes Zarco, mas no sentido de lhe ter sido dado esse nome, dizendo-se ser complicado baptizar um ilegítimo e muito mais porque o avô era sefardita.
Comecemos pelo princípio.
Se o avô era sefardita, ou seja, judeu (português ou espanhol, é indiferente) porque raio, porque carga de água, ia baptizar o neto?
Mas, imaginemos que os avós e os pais foram iluminados pelo Espírito Santo e baptizaram a criança. Porque razão tinham de ser discretos? Porque era filho bastardo e porque tinha sangue judeu?
A bastardia nunca foi impeditiva de baptismo. Mesmo as conservadoras regras estabelecidas pelo Concílio de Trento obrigavam a que as crianças fossem baptizadas nos primeiros dias de vida e isto independentemente de serem ou não legítimas.
Os judeus portugueses, que se saiba, sempre foram orgulhosos da sua religião e apesar das mais adversas condições sempre assumiram a sua identidade judaica até à implantação da Inquisição em Portugal, o que só sucedeu em 1536. Até aí, e mesmo após esta data, as pessoas eram identificadas por todos como sendo judias. Se queriam passar despercebidos, se alguma razão para isso houvesse, não conseguiam. Até houve distintivos específicos, embora com pouco uso, diga-se.
Na época em que Colombo viveu em Portugal os judeus praticavam livremente o Judaísmo e não tinham motivo para esconderem a sua religião. A expulsão e conversão forçada dos judeus ocorre em Portugal muitos anos depois de Colombo estar ao serviço dos Reis de Castela e Aragão. Até 1497 em Portugal os judeus tinham nomes judeus e não precisavam de ter outros, nem de se baptizarem, a não ser que a sua convicção religiosa o determinasse. Uma questão curiosa é: porque razão um pretenso judeu português (baptizado ou com nome dado, segundo o autor) iria dum país onde era livre de praticar a sua religião para Espanha onde havia Inquisição e perseguição aos judeus?

Mais ainda, porque razão haveria um bastardo dum infante de Portugal servir como marinheiro? É plausível que os Reis Católicos e toda a nobreza portuguesa, e até mesmo castelhana, não soubessem que Colombo fôra antes Salvador Fernandes Zarco?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Exemplo de mercador elevado à alta-nobreza

Fernão Gomes
Serviu o rei em Ceuta, e na tomada de Alcácer, Arzila e Tânger onde o rei o fez cavaleiro; em 29-8-1474 recebeu nobreza com a atribuição de cota de armas e apelido «da Mina», tudo transmissível a seus filhos.
Em 1478 é elevado ao Conselho Régio.
A entrada de filhos de plebeus ao serviço da Casa Real, entreabrindo-lhes as portas da possibilidade de nobilitação, era motivo de escândalo e de preocupação obsessiva dos «cidadãos da governança». Perspectiva idêntica manifestaram ao ver que mesteirais se aproveitavam do novo sistema de administração das aposentadorias, não só para enriquecer e exercerem o mando, «ca eles que soíam e hão de ser mandados pelos bons mandam agora», mas também, e isso vinha logo à cabeça do capítulo, porque «nunca mais usaram de seus ofícios mecânicos de que antes usavam por acharem este direito [administração das aposentadorias] tão grosso que sempre dele têm que comer por onde já são feitos escudeiros».
... parece evidente que diversas portas de ascensão social a caminho da nobilitação se começavam a abrir no Portugal das décadas de sessenta e de setenta do século XV. Forçadas pela recuperação demográfica e económica, mas não só. A guerra foi o outro grande factor de nobilitação, tanto no Portugal de D. Afonso V, como na Espanha dos Reis Católicos. D. João II aceitou pôr travão e corrigir, a pedido dos povos em 1481-82, a política de seu pai que, no contexto das «guerras passadas de Castela» ou «nas partes dalém de África», conferira estatuto e privilégios de «vassalos acontiados» a numerosos oficiais mecânicos.


(João Cordeiro Pereira, «A Estrutura Social e o seu Devir», Nova História de Portugal, vol. 5, 1. ed., Lisboa, 1998, pp. 287- 289.)


Ver mais casos de nobilitação de burgueses.
(Última actualização: 27-11-2008)

sábado, 15 de novembro de 2008

Parabéns ao Colombina

Ao bom trabalho desenvolvido!

domingo, 2 de novembro de 2008

Luís Vaz de Camões - Os Lusíadas, Canto X, 138

Ao contrário do que alguns possam pensar, Camões refere-se a Fernão de Magalhães no Canto X, estrofe 138.

Eis aqui as novas partes do Oriente
Que vós outros agora no mundo dais,
Abrindo a porta ao vasto mar patente,
Que tão forte peito navegais.

Esta estrofe refere dois tempos diferentes. Os primeiros quatro versos - os acima transcritos - formam uma frase no presente. Ou seja, no presente da narrativa refere-se o que os portugueses têm descoberto e navegado no Oriente.

Os quatro versos seguintes, formando uma segunda frase, mudam de tempo verbal; a frase que compõem refere-se a um tempo futuro.
Ora, Cristóvão Colombo chegou ao Novo Mundo antes dos portugueses chegarem à Índia. Logo, o tempo futuro à chegada e à navegação dos mares da Índia não é a chegada ao Novo Mundo. Portanto o Poeta só pode estar a referir-se a Fernão de Magalhães, um verdadeiro português que serviu o rei de Espanha.
Tétis fala a Vasco da Gama num momento entre a chegada deste à Índia e antes do seu regresso a Portugal. Esta acção passa-se seis ou sete anos depois da primeira viagem de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo, portanto gramaticalmente não faz sentido que a ninfa use um tempo verbal futuro para se referir a uma acção pretérita. No entanto, já é correcto que a ninfa refira uma acção que ainda está para acontecer usando o futuro e essa será a viagem de Fernão de Magalhães.


Mas é também razão que, no Ponente,
Dum Lusitano um feito inda vejais,
Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho há-de fazer nunca cuidado.

Esse caminho que há-de ser visto, e nunca antes pensado ou cuidado, é a rota do Pacífico, pelo estreito que ficou com o nome do seu descobridor. Tomando a Europa como ponto de partida - numa perspectiva eurocêntrica, se assim se quiser chamar -, o Estreito de Magalhães fica para ocidente; tal como ficam na direcção Ponente todas as descobertas feitas no decorrer desta empresa, pois o seu rumo, grosso modo, foi de nascente para poente. Mas se em vez de se considerar a Europa como referencial das direcções, e se em seu lugar se colocar o local onde decorre a acção, onde a ninfa profetisa os sucessos futuros dos portugueses, ainda assim continua válido o mesmo raciocínio.
O Poeta disse,

Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
que eu canto o peito ilustre lusitano

e para o efeito chamou os heróis pelos nomes, nem poderia ser de outra maneira; não os ocultou, mesmo quando algum desses heróis era «Português, porém não na lealdade» como Magalhães.
Se Cristóvão Colombo fosse português, e Camões o soubesse, este não calaria o facto em 1572, pois tal já seria tão irrelevante que até um insignificante fidalgo, como ele o era ao tempo, o saberia. Mas, sabendo-o e sendo calado pela censura, então teríamos, para além de Camões, mais um ou mais uns envolvidos na conspiração colombina e sobre a plausibilidade duma conspiração envolvendo tanta gente já aqui se escreveu.

(Última actualização: 12-11-2008)

Sobre esta matéria também já se escreveu aqui.

Pondo as coisas em contexto...

Um comentário publicado no post anterior citando Luís de Albuquerque, além de provocação gratuita, é desonesto pois coloca fora de contexto as palavras do historiador, deixando no ar a ideia de que é esse o seu discurso historiográfico quando na realidade se está perante uma resposta sarcástica aos insultos de Luciano da Silva.
Aos pseudo-historiadores, esgotados os seus iniciais quinze minutos de fama - o tempo que leva a demonstrar os seus erros -, só resta o remeterem-se ao esquecimento, ou, em alternativa, tentarem manter-se sob a atenção dos media recorrendo a fantasias ainda mais elaboradas. Como é difícil complexificar uma pseudo-história para a tornar coerente com a História, e com isso manter a atenção do público, escala-se a polémica com recurso ao insulto soez, o que é infinitamente mais fácil. É o que fez Luciano da Silva e é o que fazem muitos dos comentadores deste blogue.

(...) O Dr. Manuel Luciano da Silva também quis dar nas vistas: concedeu uma entrevista ao Jornal de Coimbra. Não vale a pena perder muito tempo com este médico luso-americano, porque já dele falámos mais do que é devido, quanto ao seu hobby, como ele diz, de historiador (mas também sei que na sua profissão de clínico tem excelente e penso que merecida reputação). Volta com a pedra de Dighton e à carta de 1424. Ficamos a saber que, na opinião do médico: 1.° o Senhor Ministro da Educação é «analfabeto» (sic), porque não deu resposta a cartas que lhe dirigiu e em que, provavelmente, o massacrava com as suas «grandes descobertas»; 2.° «Luís de Albuquerque, Vasco Graça Moura, os homens da Comissão, estão a bloquear todas as minhas pesquisas em desperdício da verdade e honra que pertence a Portugal» (o itálico é meu). E depois: «os indivíduos que estão à frente da Comissão Nacional dos Descobrimentos preocupam-se mais com as suas personalidades e só eles é que sabem... Põem o seu penacho acima da verdade e da documentação»; 3.° eu tenho «uma inveja extraordinária das minhas [suas] investigações porque trabalhou [trabalhei] com Armando Cortesão, viu [vi] o mapa muitas vezes mas não descobriu [descobri] nada»; 4.° escrevi «centenas de trabalhos sem uma única ideia original»; 5.° «na pág. 155 [de um livro meu] há uma fotografia da pedra de Dighton que foi roubada pelo Albuquerque [sou eu]. Essa foto foi feita por mim [Manuel Luciano da Silva] em 2 de Novembro de 1959 e está coberta por copyrights para língua portuguesa e inglesa até ao ano de 1990. Ele [sou eu] publica a minha fotografia, sabendo muito bem que é minha, sem mencionar de onde a tirou».
Resposta a estes quatro pontos: 1.° não se apercebeu o Dr. Manuel Luciano da Silva ao fazer a primeira afirmação que devia desconfiar do estado do seu cérebro ou, alternativamente, de que estava a ser tolo?; 2.° Confesso: «os homens da Comissão» reúnem-se diariamente para estudar meios de «bloquear» o médico luso-americano; fico espantado, como estas coisas se sabem!; 3.° tenho, de facto, uma grande inveja das sensacionais descobertas de Manuel Luciano da Silva. Se lhe pudesse roubar uma... deitava-a no caixote do lixo!; 4.° aqui deu no vinte: nunca tive uma ideia original e isso acabrunha-me! contudo, agora, pensando nisso, concluo que antes assim, apesar de tudo, porque ainda não dei qualquer prova de insanidade mental com originalidades excêntricas; 5.° nova prova de incomensurável perspicácia: roubei ao Dr. Manuel Luciano da Silva, ou fiz roubar a fotografia da pedra de Dighton; não dos folhetos que vai publicando e onde a tem reproduzido com os retoques e riscos que lhe apetece; esses folhetos de cordel são de péssima qualidade e as fotos tão más como os folhetos. E foi então que estabeleci um minucioso plano para me apoderar do negativo de uma das fotos: aliciei um neto de Al Capone, que anda lá pelas Américas na penúria (até onde podem chegar os familiares de homens de renome!) e ele prontificou-se a assaltar a casa do médico luso-americano. Fê-lo exactamente «no dia 7 de Novembro de 1986, sexta-feira, quase à meia-noite»; o Dr. Manuel Luciano da Silva tinha acabado de descobrir na carta de Zuarte Pizzigano a prova irrefutável de os Portugueses terem chegado à América antes de 1424, usando nisso «os métodos da medicina», e entrara em transe; Al Capone bi-Jr. quando penetrou sub-repticiamente em sua casa e o viu, apanhou um grande susto; mas depois recompôs-se por notar que o nosso invejável «descobridor» passava por uma fase de total alheamento, normalíssimo em seguida à assombrosa conclusão indesmentível a que chegara; e o jovem ladrão subalterno surripiou-lhe o negativo, nas barbas dele! Usei-o, pois, fraudulentamente!

*

Até onde podíamos ir nesta conversa? Mas se eu pudesse dar um conselho ao Dr. Manuel Luciano da Silva e ele me ouvisse, dizia-lhe que procurasse outro hobby; e se desconfiar da minha opinião, desinteressada e amiga, recomendava que confirmasse a validade do que sugiro, dirigindo-se a um colega da sua Clínica, onde os deve haver bons como ele é, para uma urgente consulta psicanalítica, com a promessa de contar «tudo direitinho pra ele» (como se diz no Brasil). Aposto singelo contra dobrado que, nesse caso, lhe vai ser prescrito consumir as energias excedentes do seu metabolismo a jogar o «golf», a pescar, a pintar, a caçar gambozinos ou em outra qualquer actividade assim inofensiva.
Dr. Manuel Luciano da Silva, mascarado de Infante D. Henrique na procissão do Senhor Santo Cristo, em Bristol, em 13 de Maio de 1990. Prova de que o conselho dado ao protagonista é mesmo a sério.

(Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, imp. 1991, pp. 158-161.)