sexta-feira, 1 de maio de 2009

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (1)

COLOMBO E A POLÍTICA DE SIGILO NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA*

FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES
Assistente do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa).
Bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica



1. Os descobrimentos portugueses e a política de sigilo: história breve de um conceito

Os descobrimentos dos séculos XV e XVI têm sido desde sempre um dos temas mais persistentemente dominantes na história da cultura portuguesa: historiadores, literatos, filósofos ou cientistas ocuparam-se directa ou indirectamente das viagens e das suas consequências, e disso se encontra número significativo de testemunhos logo no decorrer de Quinhentos.
O impulso e renovação da historiografia portuguesa a que se assistiu no decorrer do século XVIII traduziu-se igualmente pela atenção particular que mereceu então a época das grandes viagens. A questão tinha implicações de natureza vária explicáveis pela conjuntura cultural e política dos finais do século, entre outros factores, mas o que importa aqui notar é que se procedeu então pela primeira vez à publicação sistemática de fontes históricas, no que teve uma grande importância a acção da recém-criada Academia das Ciências de Lisboa (1779), graças à iniciativa de um dos seus sócios fundadores: o abade José Francisco Correia da Serra, regressado de Itália – onde fizera os seus estudos – havia poucos anos.
Botânico notável, com obra publicada em várias das principais revistas europeias e americanas da especialidade, o abade Correia da Serra promoveu a publicação da Colecção de livros inéditos de história portuguesa (5 volumes, 1790-1824), com material importante relativo à empresa Ultramarina, à qual se deve juntar a Colecção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas, que vivem nos domínios portugueses (7 volumes, 1812-1856); seguia assim percurso idêntico ao de outros intelectuais da época que a par dos estudos que os consagraram em diferentes áreas científicas se dedicaram, ainda que episodicamente, à história dos descobrimentos (1).
Um desses homens foi Francisco Justiniano Saraiva (frei Francisco de São Luís, 1766-1845), mais tarde cardeal, figura eminente da vida religiosa e política de Portugal na transição do século XVIII para o XIX. Em 1841 publicou um Índice cronológico das navegações onde procurou explicar, sendo o primeiro a tentar fazê-lo, um fenómeno que não parecia poder compreender-se facilmente: a espantosa escassez de testemunhos documentais conhecidos à altura sobre os descobrimentos e a expansão portuguesa.
O cardeal Saraiva procurou justificar este estado de coisas num longo passo do livro que citámos mas que vale a pena reproduzir porque se trata da primeira referência ao que mais tarde e com outro desenvolvimento ficou conhecido por política de sigilo ou de segredo:
«Dos Roteiros, Relações e Memórias, que necessariamente se haviam de escrever logo naquele tempo de nossas primeiras navegações e descobrimentos, muito pouco nos resta hoje (...). É natural que o prudente e cauteloso segredo, em que os nossos Príncipes, ao princípio, reservavam aquelas Memórias e Relações; a perda de muitas delas nas mãos dos cronistas, ou nos próprios gabinetes dos Príncipes por ocasião da sua morte; o descuido de recolher estes e outros documentos ao Arquivo geral do reino; a dificuldade de multiplicar as cópias, por não haver ainda a arte tipográfica, ou por não ter chegado a Portugal, logo nos primeiros anos da sua invenção; é natural, digo, que estas ou outras semelhantes causas produzissem a falta, que depois se experimentou, logo que se quis escrever em corpo de história a série de nossas empresas ultramarinas» (2).
Como se pode verificar, o cardeal Saraiva foi extremamente cauteloso ao enunciar a possibilidade de os relatos contemporâneos das viagens terem sido sonegados temporariamente por vontade expressa do poder político, e mesmo assim apenas «ao princípio». Paralelamente, porém, o autor enunciou toda uma série de circunstâncias que podiam explicar de forma igualmente plausível o desaparecimento de documentação relevante.
A questão tenderia a ganhar depois uma dimensão crescente e a ver perder-se a parcimónia com que foi enunciada.
Não é possível compreender o empolamento que a história dos descobrimentos conhece em Portugal no decorrer da segunda metade do século XIX sem atender às circunstâncias concretas com que o país se viu defrontado, e que neste caso se transformaram numa das molas reais que motivaram o discurso historiográfico.
A partir da década de 1870 começou a tornar-se patente o fracasso do modelo de desenvolvimento sócio-económico que funcionara com relativo sucesso desde o golpe de Estado de 1851 (a Regeneração), e do qual se pode dizer que subalternizou a exploração dos recursos ultramarinos do país. Aliás, desde que o Brasil declarou a independência em 1822, depois reconhecida em 1825, que se vê fechado um ciclo da experiência colonial portuguesa com frequência tratado em obras de síntese como um grande momento que se inicia em 1415 e vem a terminar justamente neste ano de 1825, apesar de no fundo se tratar de um conjunto de vários ciclos e eixos de orientação expansionista (que simultaneamente se sucedem e sobrepõem parcialmente): fê-lo, por exemplo, Charles Boxer (3)

O certo é que Portugal vive alheado desses recursos ultramarinos durante o decorrer de praticamente todo o século XIX – em termos económicos o Brasil deixara de contar efectivamente havia alguns anos – e até ver consignado pela comunidade internacional a posse e domínio efectivo dos territórios que grosso modo correspondem hoje a Angola e Moçambique. Mas a «partilha de África» decidida à mesa das negociações pelas potências europeias (nomeadamente na Conferência de Berlim, em 1884-1885) foi contrária às pretensões portuguesas de controlo de uma vasta faixa territorial que se estendia da costa angolana até à costa moçambicana (4), consubstanciada no chamado mapa cor-de-rosa (5).
Este projecto, concebido por um ministro de tendências políticas germanófilos (Henrique de Barros Gomes), contrariava profundamente o sentido da expansão colonial inglesa em África traçado por Cecil Rhodes; e por isso soçobrou perante a oposição britânica.
O que de qualquer forma nos importa agora é a verificação de que o discurso histórico foi uma das pedras basilares de suporte da argumentação política, que reclamava por via daquele a prioridade da presença portuguesa em África, critério naturalmente contestado pelas potências europeias com pretensões africanistas, poder económico e militar para as sustentar, mas sem direito a invocar essa prioridade histórica.
Face a essas pretensões, nomeadamente francesas e alemãs, cujo sentido ideológico (e historicamente infundado) se percebe bem no quadro das relações internacionais de Oitocentos, verificou-se pela parte portuguesa uma reacção que, se de igual forma acusava o comprometimento com as questões do tempo, não deixou por isso de produzir frutos apreciáveis. O novo impulso conhecido pela história dos descobrimentos portugueses radicou em boa parte nessa necessidade de comprovar eruditamente a prioridade da presença portuguesa em África, face aos seus concorrentes europeus, e é nestas circunstâncias que entre outras se tem de destacar a obra do visconde de Santarém, iniciador do estudo histórico da cartografia, disciplina que aliás baptizou (6).
Algumas das figuras cimeiras que se lhe seguiram repisaram em boa parte idêntico caminho: os estudos eruditos e a multiplicação de edições de fontes mal conhecidas ou até ignoradas, se por um lado concorreram para um efectivo aprofundamento das temáticas em estudo, não deixaram, noutro sentido, de revelar, por vezes à evidência, o quanto o discurso historiográfico pendia a deixar-se dominar por circunstâncias temporais que explicavam a necessidade de enfatizar o papel dos Portugueses no processo na expansão europeia. Exemplarmente, foi o caso de um Joaquim Pedro de Oliveira Martins, não obstante autor de uma obra tão extensa quanto notável (7).

Na verdade dos factos a tese do sigilo não ganha contributos particularmente significativos, mas sem dúvida tende a gerar-se uma ambiência que favorecerá a teorização e desenvolvimentos mais radicais verificáveis nos períodos subsequentes, e em relação à qual os seus mentores não se mostrarão alheios, ainda que o não acusem directamente.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

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