sexta-feira, 1 de maio de 2009

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa

DOMINGUES, Francisco Contente
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

O texto que em baixo se segue foi retirado e expurgado das gralhas mais evidentes resultantes de leitura óptica da revista Mare Liberum [Revista de História dos Mares], n.º 1-13, Ophir, Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses [em CD-R], s. l., CNCDP, [1999].
Para facilidade de acomodação neste espaço, o artigo vai repartido em cinco partes, sendo a última a correspondente às notas.
As ilustrações apresentadas são da responsabilidade do editor do artigo.




(Foto retirada de Revista da Armada)

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (1)

COLOMBO E A POLÍTICA DE SIGILO NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA*

FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES
Assistente do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa).
Bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica



1. Os descobrimentos portugueses e a política de sigilo: história breve de um conceito

Os descobrimentos dos séculos XV e XVI têm sido desde sempre um dos temas mais persistentemente dominantes na história da cultura portuguesa: historiadores, literatos, filósofos ou cientistas ocuparam-se directa ou indirectamente das viagens e das suas consequências, e disso se encontra número significativo de testemunhos logo no decorrer de Quinhentos.
O impulso e renovação da historiografia portuguesa a que se assistiu no decorrer do século XVIII traduziu-se igualmente pela atenção particular que mereceu então a época das grandes viagens. A questão tinha implicações de natureza vária explicáveis pela conjuntura cultural e política dos finais do século, entre outros factores, mas o que importa aqui notar é que se procedeu então pela primeira vez à publicação sistemática de fontes históricas, no que teve uma grande importância a acção da recém-criada Academia das Ciências de Lisboa (1779), graças à iniciativa de um dos seus sócios fundadores: o abade José Francisco Correia da Serra, regressado de Itália – onde fizera os seus estudos – havia poucos anos.
Botânico notável, com obra publicada em várias das principais revistas europeias e americanas da especialidade, o abade Correia da Serra promoveu a publicação da Colecção de livros inéditos de história portuguesa (5 volumes, 1790-1824), com material importante relativo à empresa Ultramarina, à qual se deve juntar a Colecção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas, que vivem nos domínios portugueses (7 volumes, 1812-1856); seguia assim percurso idêntico ao de outros intelectuais da época que a par dos estudos que os consagraram em diferentes áreas científicas se dedicaram, ainda que episodicamente, à história dos descobrimentos (1).
Um desses homens foi Francisco Justiniano Saraiva (frei Francisco de São Luís, 1766-1845), mais tarde cardeal, figura eminente da vida religiosa e política de Portugal na transição do século XVIII para o XIX. Em 1841 publicou um Índice cronológico das navegações onde procurou explicar, sendo o primeiro a tentar fazê-lo, um fenómeno que não parecia poder compreender-se facilmente: a espantosa escassez de testemunhos documentais conhecidos à altura sobre os descobrimentos e a expansão portuguesa.
O cardeal Saraiva procurou justificar este estado de coisas num longo passo do livro que citámos mas que vale a pena reproduzir porque se trata da primeira referência ao que mais tarde e com outro desenvolvimento ficou conhecido por política de sigilo ou de segredo:
«Dos Roteiros, Relações e Memórias, que necessariamente se haviam de escrever logo naquele tempo de nossas primeiras navegações e descobrimentos, muito pouco nos resta hoje (...). É natural que o prudente e cauteloso segredo, em que os nossos Príncipes, ao princípio, reservavam aquelas Memórias e Relações; a perda de muitas delas nas mãos dos cronistas, ou nos próprios gabinetes dos Príncipes por ocasião da sua morte; o descuido de recolher estes e outros documentos ao Arquivo geral do reino; a dificuldade de multiplicar as cópias, por não haver ainda a arte tipográfica, ou por não ter chegado a Portugal, logo nos primeiros anos da sua invenção; é natural, digo, que estas ou outras semelhantes causas produzissem a falta, que depois se experimentou, logo que se quis escrever em corpo de história a série de nossas empresas ultramarinas» (2).
Como se pode verificar, o cardeal Saraiva foi extremamente cauteloso ao enunciar a possibilidade de os relatos contemporâneos das viagens terem sido sonegados temporariamente por vontade expressa do poder político, e mesmo assim apenas «ao princípio». Paralelamente, porém, o autor enunciou toda uma série de circunstâncias que podiam explicar de forma igualmente plausível o desaparecimento de documentação relevante.
A questão tenderia a ganhar depois uma dimensão crescente e a ver perder-se a parcimónia com que foi enunciada.
Não é possível compreender o empolamento que a história dos descobrimentos conhece em Portugal no decorrer da segunda metade do século XIX sem atender às circunstâncias concretas com que o país se viu defrontado, e que neste caso se transformaram numa das molas reais que motivaram o discurso historiográfico.
A partir da década de 1870 começou a tornar-se patente o fracasso do modelo de desenvolvimento sócio-económico que funcionara com relativo sucesso desde o golpe de Estado de 1851 (a Regeneração), e do qual se pode dizer que subalternizou a exploração dos recursos ultramarinos do país. Aliás, desde que o Brasil declarou a independência em 1822, depois reconhecida em 1825, que se vê fechado um ciclo da experiência colonial portuguesa com frequência tratado em obras de síntese como um grande momento que se inicia em 1415 e vem a terminar justamente neste ano de 1825, apesar de no fundo se tratar de um conjunto de vários ciclos e eixos de orientação expansionista (que simultaneamente se sucedem e sobrepõem parcialmente): fê-lo, por exemplo, Charles Boxer (3)

O certo é que Portugal vive alheado desses recursos ultramarinos durante o decorrer de praticamente todo o século XIX – em termos económicos o Brasil deixara de contar efectivamente havia alguns anos – e até ver consignado pela comunidade internacional a posse e domínio efectivo dos territórios que grosso modo correspondem hoje a Angola e Moçambique. Mas a «partilha de África» decidida à mesa das negociações pelas potências europeias (nomeadamente na Conferência de Berlim, em 1884-1885) foi contrária às pretensões portuguesas de controlo de uma vasta faixa territorial que se estendia da costa angolana até à costa moçambicana (4), consubstanciada no chamado mapa cor-de-rosa (5).
Este projecto, concebido por um ministro de tendências políticas germanófilos (Henrique de Barros Gomes), contrariava profundamente o sentido da expansão colonial inglesa em África traçado por Cecil Rhodes; e por isso soçobrou perante a oposição britânica.
O que de qualquer forma nos importa agora é a verificação de que o discurso histórico foi uma das pedras basilares de suporte da argumentação política, que reclamava por via daquele a prioridade da presença portuguesa em África, critério naturalmente contestado pelas potências europeias com pretensões africanistas, poder económico e militar para as sustentar, mas sem direito a invocar essa prioridade histórica.
Face a essas pretensões, nomeadamente francesas e alemãs, cujo sentido ideológico (e historicamente infundado) se percebe bem no quadro das relações internacionais de Oitocentos, verificou-se pela parte portuguesa uma reacção que, se de igual forma acusava o comprometimento com as questões do tempo, não deixou por isso de produzir frutos apreciáveis. O novo impulso conhecido pela história dos descobrimentos portugueses radicou em boa parte nessa necessidade de comprovar eruditamente a prioridade da presença portuguesa em África, face aos seus concorrentes europeus, e é nestas circunstâncias que entre outras se tem de destacar a obra do visconde de Santarém, iniciador do estudo histórico da cartografia, disciplina que aliás baptizou (6).
Algumas das figuras cimeiras que se lhe seguiram repisaram em boa parte idêntico caminho: os estudos eruditos e a multiplicação de edições de fontes mal conhecidas ou até ignoradas, se por um lado concorreram para um efectivo aprofundamento das temáticas em estudo, não deixaram, noutro sentido, de revelar, por vezes à evidência, o quanto o discurso historiográfico pendia a deixar-se dominar por circunstâncias temporais que explicavam a necessidade de enfatizar o papel dos Portugueses no processo na expansão europeia. Exemplarmente, foi o caso de um Joaquim Pedro de Oliveira Martins, não obstante autor de uma obra tão extensa quanto notável (7).

Na verdade dos factos a tese do sigilo não ganha contributos particularmente significativos, mas sem dúvida tende a gerar-se uma ambiência que favorecerá a teorização e desenvolvimentos mais radicais verificáveis nos períodos subsequentes, e em relação à qual os seus mentores não se mostrarão alheios, ainda que o não acusem directamente.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (2)

2. Jaime Cortesão e o sigilo como teoria historiográfica

Jaime Cortesão foi um dos mais notáveis historiadores portugueses do século XX, no sentido em que contribuiu poderosamente para a renovação dos horizontes metodológicos que enquadravam o modus faciendi desta disciplina em Portugal. Uma perspectiva alargada a problemas e métodos de outras disciplinas (particularmente da geografia), uma concepção global e universalista da história que à revelia de um conhecimento prévio o aproximaram decisivamente da escola dos Annales, constituíram novidade de monta nos inícios da década de 1920, quando Cortesão publica os seus primeiros trabalhos históricos na História da Colonização Portuguesa no Brasil (8).

Pela mesma altura, mais exactamente em 1924, Cortesão publica também o primeiro artigo em que procura teorizar a política de sigilo enquanto sistema explicativo das extensas lacunas documentais então verificáveis na história dos descobrimentos (9). O tema continuou a ser uma das constantes dos seus trabalhos subsequentes, e dele se ocuparia não só na História dos Descobrimentos Portugueses que deixou inacabada (10), mas em livro dado à estampa no ano da sua morte e onde desenvolveu esta já então muito polémica tese até às últimas consequências (11).
O sigilo posto em prática pelos Portugueses não foi uma invenção ou uma prática nova, mas antes uma medida corrente na história de situações semelhantes. Como observámos em outro lugar (12) Jaime Cortesão considerava-o uma prática usual de todos os grandes impérios marítimos apostados na defesa da sua supremacia. Os Portugueses não teriam portanto senão prosseguido uma estratégia empregue desde a Antiguidade, e tanto mais necessária quanto menor o poder político-militar efectivo de quem a executava: Cartago utilizara o sigilo, enquanto o poderio romano o pudera dispensar.
Atentemos porém nas palavras do próprio Cortesão:
«Os grupos sociais, baseados no comércio marítimo, que iniciaram um novo sistema de expansão, tendem, para evitar a concorrência a transformá-lo em monopólio e a defendê-lo tanto mais, quanto menor seja o volume social e a continuidade do domínio económico próprios, e menor a longevidade dos instrumentos produtores, e o número e poder dos concorrentes» (13).
A política de sigilo a que se refere Cortesão não diz pois respeito aos descobrimentos «na sua expressão mais simples», mas sim «ao descobrimento económico de novas regiões produtoras ou das estradas marítimas que aí levavam» (14). Em causa estava o comércio africano, nomeadamente na zona da Guiné, por se querer defender da concorrência estrangeira o avultado provento do tráfico local.
Não nos é possível analisar aqui detalhadamente todas as vertentes da política de sigilo, porquanto isso implica na prática uma revisão de toda a história dos descobrimentos portugueses. Mas o princípio fundamental do raciocínio de Jaime Cortesão é claro: se é dubitativo que já houvesse sigilo de Estado durante o tempo em que o infante D. Henrique foi a figura principal de entre os promotores das viagens de exploração, o caso mudou decididamente de figura durante o reinado de D. João II (1481-1495) – enquanto se definiam concretamente as vias da expansão portuguesa, mormente pela procura sistemática de informações sobre o Oriente e sobre a ligação marítima com a Índia, o Estado, no quadro da orientação política traçada pelo Príncipe Perfeito, teria sonegado sistematicamente qualquer informação susceptível de fornecer à concorrência estrangeira acesso aos meios privilegiados de que os Portugueses dispunham então.
O sigilo consistiria portanto, numa vigilância estreita da produção historiográfica, da cartografia – segundo Cortesão existia uma cartografia oficial, para o grande público, e uma cartografia secreta que essa, sim, mostrava o avanço dos conhecimentos geográficos portugueses –, da construção dos navios, particularmente da caravela, de que se teria proibido a venda a estrangeiros, dos roteiros, dos instrumentos de navegar, de tudo, enfim, que revelasse a superioridade tecnológica portuguesa nas matérias que à navegação diziam respeito.
Jaime Cortesão estava obviamente a um passo de atribuir aos navegadores portugueses créditos para os quais não havia na altura comprovação documental segura: afirmou, por exemplo, o descobrimento pré-cabralino do Brasil – uma questão muito polémica desde sempre entre os historiadores que se ocuparam da matéria: basta constatar que os estudos do maior rigor de Max Guedes e Luís de Albuquerque levaram o primeiro a pronunciar-se pela afirmativa, e o segundo pela negativa (15). Da mesma forma Jaime Cortesão defendeu a tese de que o que é aparentemente um dos maiores enigmas no processo dos descobrimentos ser explicável pelo sigilo.
Referimo-nos desta feita ao facto de se verificar um hiato no processo expansionista português: depois de uma longa e prolongada busca do caminho marítimo para a Índia, medeia um longo espaço de quase dez anos entre o retorno de Bartolomeu Dias a Lisboa, em 1488, com a notícia de que efectivamente havia ligação marítima entre o Atlântico e o Pacífico (16), provando agora sim e definitivamente o desacerto das concepções ptolemaicas que marcavam os conhecimentos geográficos da época, e a saída em 1497 da armada que sob o comando de Vasco da Gama iria finalmente estabelecer a via marítima entre a Europa e a Índia.

É indubitável que a rota de Bartolomeu Dias, levando-o a descer penosamente ao longo da costa ocidental africana, mostra que os navegadores não conheciam ainda o regime de ventos e correntes do Atlântico Sul. Pelo contrário, Vasco da Gama viaja com o conhecimento perfeito de que para a navegação à vela se tornava muito mais fácil atingir o extremo sul do continente africano fazendo uma longa bordada para oeste no Atlântico Sul, depois de passadas as ilhas de Cabo Verde, evitando as condições físicas adversas, pois tanto se contornavam os ventos alisados, como as correntes marítimas contrárias à progressão para sul junto à costa de África.
A explicação lógica, segundo Cortesão, seria a admissão de que os Portugueses empreenderam viagens de exploração secretas no Atlântico Sul, precisamente com vista ao reconhecimento dos condicionalismos físicos da navegação, permitindo que Vasco da Gama dispusesse à partida de instruções claras quanto à melhor rota para chegar à Índia.
Acresce um outro facto: Bartolomeu Dias comandava uma pequena frota de duas caravelas latinas e uma naveta (navio de abastecimentos que foi abandonado quando já não era necessário), enquanto Vasco da Gama saiu à frente de uma armada de quatro naus.
A caravela latina portuguesa empregue nas viagens dos descobrimentos distinguiu-se das demais, como constatou, entre outros, o italiano Ca da Mosto, por uma particular aptidão para a navegação à bolina, manobra que consistia numa progressão em zigue-zague contra o sentido dominante do vento (e porque um navio à vela não pode em qualquer circunstância progredir «contra o vento», como por vezes se diz erroneamente). As investigações mais recentes no domínio da arqueologia naval mostram-nos que a razão para o facto deve residir na articulação entre um desenho de casco diferente do que era então vulgar em navios deste tipo e uma superfície de velame que devia atingir o dobro da de embarcações similares com a mesma arqueação (17).
Todavia a navegação à bolina não podia deixar de ser um recurso, uma vez que era sempre uma manobra penosa. Conhecendo os regimes de ventos era possível navegar com navios de pano redondo, as naus, pois estes só se tornam eficazes com vento pela popa. Basta saber-se que Bartolomeu Dias comandava caravelas, e Vasco da Gama naus, para se tornar evidente que entre uma viagem e outra se completou o reconhecimento do regime de ventos do Atlântico Sul, pois no Atlântico Norte o problema estava resolvido havia muito.
Toda a polémica se centrou em torno do como se efectuou esse reconhecimento. Jaime Cortesão juntou à tese das viagens secretas a convicção (mais uma vez sem base documental concreta) de que Vasco da Gama teria sido encarregue de pelo menos uma delas, pois não era crível, em seu entender, que o capitão-mor da armada enviada a estabelecer contacto com o Oriente fosse um homem até então de todo alheio às coisas do mar.
Em consequência, Cortesão chegou a levar estas supostas viagens até ao Índico, tendo encontrado num texto atribuído a Ibn Magid (que se acreditou ter sido o piloto árabe que conduziu Vasco da Gama a Calecute) referência ao naufrágio de navios portugueses em Sofala nos meados da década de 1490.
Este é aliás um dos casos em que a crítica documental veio a permitir a elaboração de hipóteses bem mais plausíveis. Em primeiro lugar sabe-se hoje que Ibn Magid deixou de navegar em 1465, e o seu Roteiro de Sofala tem referências a acontecimentos posteriores que não podem deixar de ser o resultado de acrescentos feitos mais tarde por mão desconhecida. Assim, a passagem que relata o suposto naufrágio de navios portugueses em 1495-1496, próximo de Sofala, reporta-se quase de certeza ao dos irmãos Brás e Vicente Sodré, naufragados junto às ilhas de Curia Muria em 1503. E Ibn Magid não pode obviamente ter sido o piloto árabe de Vasco da Gama, como durante tanto tempo se acreditou (18).
Este pequeno episódio contém em si o mais forte dos argumentos contrários à política de sigilo: a progressiva revelação e estudo de novos documentos vai mostrando que o volume e circulação de informações era bem maior na altura do que se podia supor anteriormente, e torna claro que o sigilo explicou aparentemente várias circunstâncias que vieram a ficar aclaradas com as revelações documentais feitas entretanto.
No fundo, e apesar desta breve explicação, cremos ficar à vista que a teoria do sigilo não é senão um encadear de hipóteses construída a partir de premissas que estão longe de se poder considerar verificadas. Por isso mesmo mereceu forte contradita, de que se encarregou primeiro Duarte Leite (19), e depois Damião Peres (20) – este último resolvendo praticamente a questão.
A formulação de Cortesão tinha como base um raciocínio a-histórico: quando não havia documentos, encontrava-se a «prova» do sigilo. Logo, todas as realizações imputáveis ao abrigo desta teoria não careciam de verificação documental – porque, por natureza, a não havia. Simplificando grosseiramente, é como se se partisse do princípio de que a falta de documentação provava por si a realização de viagens secretas de descobrimento.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (3)

3. A crítica da política de sigilo

O primeiro e mais contundente dos críticos da tese de Jaime Cortesão foi, como acabámos de dizer, o ilustre matemático, político e historiador Duarte Leite, cujos reparos consubstanciaram muito do que se disse subsequentemente em contrário da política de sigilo.
A nosso ver, e não obstante a justeza de boa parte do que afirmou Duarte Leite, a argumentação que este desenvolveu não está ela também isenta de percalços que se lhe podem apontar (21). Mais consistente se mostrou Damião Peres.
Paradoxalmente, foram as próprias concepções historiográficas deste último (aliadas a um notável bom senso, diga-se de passagem) que o levaram a rejeitar as hipóteses de Cortesão. Historiador de claro pendor historicista, autor de uma obra sólida mas que, valha a verdade, pouco trouxe de novo à renovação metodológica dos estudos da especialidade (bem ao contrario, repita-se, de Cortesão), Damião Peres deu mostra de um arreigado apego ao documento que lhe permitiu no caso vertente salientar a fraqueza argumentativa e a falta de consistência da tese que contraditou com base em cinco pontos:
1. Não fazia sentido ocultar o reconhecimento ou a ocupação de um território, sendo a questão da prioridade, como era, o primeiro critério a ter em linha de conta na reivindicação da respectiva soberania.
2. Não fazia igualmente sentido preservar o segredo das Índias depois das bulas de Nicolau V e Calisto III reconhecerem o monopólio material e espiritual sobre todas as regiões descobertas até às «Índias» a favor dos Portugueses.
3. Estrangeiros houve que colheram em Portugal os elementos que muito bem entenderam relativos às navegações, para depois os divulgarem na Europa, como foi o caso, por exemplo, de um Martin Behaim. Argumento este que Luís de Albuquerque reforçou em estudos posteriores com abundantes casos concretos.
4. Era o próprio espírito da época que, norteando a escrita dos cronistas ou de outros relatores coevos, obstava à evocação de certos factos. Relembremos aqui a propósito e ilustrativamente as inúmeras passagens da Crónica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara onde a honra e proveito dos membros da casa do infante D. Henrique, ou a captura de escravos, sobrelevam sistematicamente o registo do alcance efectivo das explorações geográficas que concomitantemente se iam realizando.
Vitorino Magalhães Godinho viria mais tarde a realçar a importância deste argumento (22), que constitui sem dúvida uma das maiores brechas a apontar na construção de Jaime Cortesão, por vezes demasiadamente propenso a querer encontrar nas fontes o que muito dificilmente lá poderia estar por se encontrar completamente afastado da ordem de preocupações e da escala de valores dos testemunhos de então.
5. E finalmente, se houve o cuidado de não divulgar textos como o regimento do astrolábio e do quadrante, que tinha forçosamente de andar nas mãos dos pilotos e se aceita ser do tempo de D. João II, Damião Peres conclui que não existiu política de sigilo em sentido lato, mas apenas a preocupação de episodicamente resguardar a divulgação de factos considerados importantes em situações conjunturais distintas.
É evidente que os factos corroboraram mais de uma vez as observações de Damião Peres: sucedeu assim aquando do descobrimento do Brasil, que D. Manuel I se apressou a comunicar aos Reis Católicos, em documento que aliás desdramatiza o problema do reconhecimento deste território anteriormente à viagem de Pedro Álvares Cabral. A carta mostra claramente que na perspectiva do monarca português o Brasil interessava tão só e de momento como ponto de apoio para a Carreira da Índia, donde que, se é um facto que são fortes (como defende Max Guedes) os indícios de que os navegadores ao serviço de D. Manuel tinham já a suspeita da existência de terras naquelas paragens, ela não era também a primeira das preocupações da coroa.
Parece-nos que de tudo isto se pode tirar uma conclusão óbvia: se é certo que houve sigilo em determinadas matérias, não é menos verdade que Damião Peres opinou acertadamente quando referiu o interesse conjuntural deste silêncio; pois noutras circunstâncias impôs-se a política contrária, a da publicitação dos resultados das viagens.
Ou seja, e por outras palavras, o sigilo que o Estado português pôs em prática foi tão efectivo quanto em certas circunstâncias esta foi (e continua a ser) uma atitude normal da governação política. Atitude conjuntural, insistimos, que pode ser perfeitamente adequada quando as circunstâncias o exigem, ou um contra-senso em alturas diferentes. O que não podia era ter havido um silenciamento sistemático que no fórum da política internacional seria amiúde contrário aos interesses expansionistas da coroa lusitana.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (4)

4. Colombo em Portugal e a política de sigilo

Um dos mais radicais dos desenvolvimentos da política de sigilo (que teve, de qualquer forma, um longo curso na historiografia portuguesa) disse precisamente respeito à figura de Cristóvão Colombo. Em artigo publicado em 1935, Armando Cortesão defendeu a tese de que Colombo não passava, afinal, de um agente secreto ao serviço de D. João II, enviado por este aos Reis Católicos (23). Com que objectivo? Estando D. João seguro de que o caminho marítimo para a Índia era mais curto fazendo o contorno do continente africano, Colombo teria sido incumbido de convencer Fernando e Isabel a seguirem a rota ocidental. Os conhecimentos geográficos dos Portugueses garantir-lhes-iam que por esse lado o acesso à Índia era muito mais moroso, e o rei português ficaria com as mãos livres para prosseguir o seu plano.
A ideia não era completamente nova, e aparentemente só a notoriedade de Armando Cortesão, que acabava de publicar uma obra imensa que o impôs de imediato como um dos grandes historiadores da cartografia do seu tempo, a relançava com créditos reais (24).
Pode todavia argumentar-se que seria este um escrito de juventude, relativamente falando, aliás retomado num outro artigo publicado em inglês dois anos depois, com um título sugestivo: «The mystery of Columbus» (25). Sucede porém que A. Cortesão o incluiu na colectânea de Esparsos que deu à estampa em Coimbra em 1974 (26). Quer dizer que quase quarenta anos depois, e não obstante tudo o que fora entretanto dito em contrário, continuava convencido da justeza de uma tese que praticamente era então defendida apenas por seu irmão, se considerarmos somente os historiadores dos descobrimentos de maior renome.
A talhe de foice, convém acrescentar que não nos interessa aqui retomar um assunto que muito recentemente voltou à baila: o da nacionalidade portuguesa (de entre as várias que são reclamadas...) de Cristóvão Colombo. Surpreendentemente, a suposta cidadania portuguesa de Colombo e a sua qualidade de agente secreto de D. João II têm sido por vezes consideradas como uma espécie de relação de causa e efeito. E surpreendentemente porque, como é óbvio, nada tem a ver uma coisa com a outra: não é a nacionalidade que traça o destino da fidelidade dos espiões, sejam estes verdadeiros ou falsos. Colombo poderia perfeitamente ser italiano, maiorquino ou outra coisa qualquer, e, se fosse esse o caso, estar ao serviço do Príncipe Perfeito.
O problema em causa tem a ver com um aparente paradoxo: a convivência de Colombo com os meios náuticos portugueses durante largos anos, e as convicções geográficas do genovês, que indubitavelmente estavam aquém do que se pensava naqueles meios.
Não é novidade alguma que Colombo laborou no que é amiúde chamado o erro mais fecundo da história. Supondo que o valor do grau de meridiano terrestre era de cerca de 14 léguas e da mesma forma que o cartógrafo Paolo Toscanelli acertava ao propor a distância de 130º entre a Europa e a Ásia, o que em Portugal se sabia no seguimento de uma consulta que lhe fora feita a pedido de D. Afonso V, o genovês foi por força levado a pensar que esse era o caminho mais curto para o Oriente (erro a que acrescentou um outro, o do valor que tomou para a milha marítima). Ora o certo é que a marinharia portuguesa atribuía ao grau do meridiano valores mais próximos da realidade: 16 2/3 léguas, normalmente, 17,5 léguas nos finais do século XV, e Duarte Pacheco Pereira aproximou-se ainda mais com as 18 léguas que avança no Esmeraldo de Situ Orbis (27), obra que redigiu entre 1505 e 1508 segundo Joaquim Barradas de Carvalho.
O valor de 17,5 léguas vulgarizou-se rapidamente, mas convém aqui deixar claro que o proposto por Duarte Pacheco não encontrou eco em Portugal senão na Arte de Navegar de Manuel Pimentel (1712) (28). Apesar de tudo compreendem-se as diferenças em causa em relação aos c. de 111 kms. do grau de meridiano, correspondentes a 18,75 léguas marítimas portuguesas.
A presença de Jaime de Maiorca em Portugal e o início da cartografia portuguesa c. 1445, de acordo com Charles Verlinden, não podiam por outro lado deixar de fazer crer aos mareantes portugueses que a distância de 130º a que aludimos atrás estava muito aquém dos 220º que efectivamente separam a Europa e a Ásia pelo ocidente. Tudo junto, portanto, só pode ter uma explicação ainda de acordo com os defensores do sigilo: Colombo foi deliberadamente induzido em erro quanto àquilo que a coroa portuguesa efectivamente pensava em relação ao caminho marítimo para o Oriente (enunciado que é contraditório com a ideia de que seria um espião português; nesse caso, não faria sentido pensar-se que tivesse sido enganado).
Não cremos que se possa aceitar que Colombo pudesse ter deixado de saber o que pensavam os marinheiros portugueses a este respeito. Quer porque viajou com eles para a costa de África, quer por via do acesso aos papéis de um dos homens que navegou no tempo do infante D. Henrique: Bartolomeu Perestrelo, primeiro donatário da ilha de Porto Santo, cuja filha Filipa veio a ser mulher do genovês e mãe de seu filho Diogo. Quer ainda porque um homem interessado nas coisas do mar teve de certeza muitas oportunidades de reforçar esses contactos durante o tempo em que esteve estabelecido em Lisboa como cartógrafo, juntamente com seu irmão Bartolomeu.
Seria possível apesar de tudo que Colombo não se tivesse apercebido do erro em que laborava, ao tomar conhecimento das concepções geográficas então em curso nos meios náuticos ligados às navegações portuguesas? Esta questão crucial é em certo sentido uma falsa questão. E isto por várias razões.
Em primeiro lugar dificilmente se pode pôr o problema de existirem concomitantemente concepções geográficas «certas» e «erradas». É claro que essa classificação é hoje, para nós, um exercício de estilo fácil, face aos nossos próprios conhecimentos actuais. Mas nos finais do século XV corriam paralelamente e com créditos não necessariamente muito diferentes concepções que misturavam ou separavam a geografia herdada da Antiguidade (ou as geografias, para sermos exactos), a geografia imaginária da Idade Média, como a expendida Livros de Maravilhas, ou a geografia (ainda de resultados muito parcelares) emergente do contacto dos Portugueses com os territórios com que iam tomando conhecimento, na costa africana ou nas ilhas atlânticas.
O facto de Colombo dar crédito ao italiano Toscanelli – que por seu turno creditava a Marco Polo, como o fazia também o genovês – nada tinha de extraordinário, e constituía uma opção pacífica, no sentido em que era perfeitamente legítima, no quadro do saber geográfico da época. A construção da visão do mundo que tornaria evidente o erro de Colombo era ainda uma tarefa que ensaiava os primeiros passos.
E esses passos tão pouco foram imediatos. Vejamos apenas dois exemplos, tirados da náutica portuguesa, que ilustram os embaraços e dificuldades bem próprios desta matéria.
O primeiro caso que podemos invocar é o da questão das Molucas. Afirmada a necessidade de prolongar o semi-meridiano de Tordesilhas para resolver o problema da soberania deste rico centro produtor de cravo, que tanto interessava a qualquer das coroas ibéricas, os diplomatas de D. João III conduziram as negociações com extremo tacto, porquanto era convicção dominante entre os peritos ao serviço do rei português que as Molucas pertenciam de facto a Carlos V. Como não havia processo de determinar a longitude no mar com o rigor necessário para resolver a pendência sem margem para dúvidas (o método adequado só viria a ser testado com sucesso na segunda metade do século XVIII), D. João III acabou por pagar uma soma fabulosa pela soberania de um território que na realidade lhe pertencia de facto, segundo o critério de Tordesilhas alargado para o Oriente. Convencido, quase seguramente, de que estava a fazer um bom negócio (29).
O segundo exemplo é o do padre Fernando Oliveira: este teórico da marinharia (que foi também piloto de galés, teórico de construção naval e cartógrafo) propôs 20 léguas para o grau de meridiano numa obra que redigiu na primeira versão em 1570, e que se conserva manuscrita. E fê-lo, deve acrescentar-se, com uma notável virulência contra os pilotos ou matemáticos que usavam ou defendiam que se usasse um valor inferior, quando as 20 léguas marítimas portuguesas acusavam em relação ao valor real exactamente a mesma margem de erro que as 17,5 léguas então em curso, só que desta vez por excesso (30).
Quer dizer: nenhuma destas questões era propriamente um dado que se pudesse dar por adquirido urbi et orbi. A opção de Colombo estava bem aquém daquilo que lhe seria possível pensar se acreditasse na prática de navegação dos pilotos portugueses (que aliás estava longe de ser unânime: muitos continuaram a empregar o módulo de 16 2/3 léguas enquanto outros se serviam do de 17,5). Simplesmente não o fez. Preferiu insistir no resultado que lhe aparecia em consequência dos estudos profundos a que se dedicou, mas não cremos, de modo algum, que pudesse estar completamente alheado do que se passava a bordo dos navios de D. João II. Mesmo que disso tivesse um conhecimento imperfeito, é duvidoso que abandonasse as conclusões que foi construindo com o correr dos anos, para mais alimentadas como eram por um carácter marcado por uma notável pertinácia; como é inquestionável, e o demonstra todo o processo negocial que culminou com as capitulações assinadas em Espanha.
A permanência de Colombo em Portugal é concomitante com o desenvolvimento dos preliminares do projecto de alcançar a Índia que D. João II perseguia com uma tenacidade não menos notável. E desde o retorno de Bartolomeu Dias, em finais de 1488, a única questão que se punha ao monarca português era a reunião das condições necessárias para garantir o sucesso do seu plano. Reside aqui, de resto, a explicação para o hiato que referimos atrás: seria um contra-senso enviar uma armada para a Índia logo depois da viagem de Dias, sem estarem devidamente precatadas essas condições técnicas (o tipo de navios empregues, como vimos, foi diferente, e as naus de Vasco da Gama foram construídas expressamente para a viagem, como no-lo diz o cronista da Índia Gaspar Correia (31)), políticas e diplomáticas.
Por outro lado a viagem de Bartolomeu Dias não era em si suficiente. Enquanto planeava as viagens marítimas D. João II enviava emissários por terra a saber notícias do Oriente. Os dois primeiros, frei António de Lisboa e Pêro de Montarroio, fracassaram na missão que lhes fora confiada por não dominarem a língua árabe. Esse estranho erro não foi cometido com Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, que saíram de Lisboa em 1487, por terra, portanto no mesmo ano em que Dias zarpava em busca do extremo sul do continente africano.
Foi só em 1492, ou talvez no ano seguinte, que D. João II recebeu pela mão de mestre José, um seu enviado que encontrara Pêro da Covilhã no Cairo (Afonso de Paiva faleceu entretanto), o circunstanciado relato que aquele enviou ao rei, segundo se supõe com boas razões, dando conta das viagens que fizera entretanto pelo Oriente (32).
Só nessa altura o Príncipe Perfeito tinha então as notícias de que carecia para poder enviar uma armada à Índia. É porém sabido que o rumo dos acontecimentos impediu, por vários motivos diferentes, que esse desiderato fosse cumprido desde logo. Um deles precipitou-se quase de imediato.
A 4 de Março de 1493 a frota de Cristóvão Colombo, vinda da viagem de descobrimento da América, entrava no rio Tejo. D. João II encontrava-se perto de Santarém, onde o mandou ir ter, para afirmar ao genovês que as terras por si descobertas se encontravam no senhorio da Guiné, pertença do rei de Portugal pela letra do tratado das Alcáçovas firmado em 1479.
Rui de Pina ocupou-se do episódio no capítulo LXVI da Crónica de D. João II (33). Estamos em crer que as parcas linhas que dedicou ao assunto são muito mais eloquentes do que parecem a uma primeira leitura.
Tanto quanto Colombo estava convencido que chegara ao Cataio, estava D. João ciente de que o navegador nem chegara lá perto. Isso parece-nos evidente, sobretudo porque é de calcular que as recentes novidades de Pêro da Covilhã comprovassem a crença do monarca português na justeza de que o caminho que procurava era aquele pelo qual mandava os seus navegadores. Não obstante, segundo Rui de Pina, o rei teria lamentado não ter dado ouvidos a Colombo quando ele se propusera, havia anos, fazer esta mesma viagem ao seu serviço. O que é muito pouco provável.
Efectivamente o cronista dá-nos uma ideia do que pode ter sido a audiência que o rei concedeu ao involuntário descobridor da América. Seguro do seu êxito «o dito Almirante, por ser de sua condição um pouco alevantado, e no recontamento de suas coisas, excedia sempre os termos da verdade, fez esta coisa, em ouro, prata, e riquezas muito maior do que era» (34).
Se em relação às miríficas riquezas que Colombo esperava encontrar no seu Cataio a viagem fora de facto um fracasso completo, o almirante não podia deixar de afirmar o contrário, que sem dúvida esperava confirmar posteriormente. Certo da razão que afirmara contra todos com espantosa pertinácia, terá usado mesmo de alguma insolência para com o rei de Portugal (numa atitude que tinha o seu quê de político, sem dúvida, pois não lhe era permitida, nas circunstâncias em que se encontrava, a mínima hesitação); e este foi instado por alguns dos seus cortesãos a pura e simplesmente eliminar o genovês (35).
D. João II, que dirigiu os negócios internos e externos do país com mão de ferro, não teria evidentemente qualquer pejo em o fazer se isso fosse a medida mais aconselhável. Pelo contrário, não só não deu ouvidos aos seus conselheiros como deixou Colombo ir em paz. Nunca o faria se visse posto em causa o plano que arquitectava madura e longamente, para mais numa altura em que estava à beira do sucesso.
Voltemos um pouco atrás no curso dos acontecimentos, e não nos esqueçamos que Colombo estava em Lisboa quando Bartolomeu Dias voltou em 1488 da viagem em que dobrou o cabo da Boa Esperança. Nesse mesmo ano voltara a insistir com D. João II para que este apoiasse o empreendimento que planeava. O rei garantiu-lhe nessa ocasião, como lhe fora pedido, que podia voltar a Lisboa sem ser molestado (Colombo temia ser preso caso entrasse na capital portuguesa, por razões que desconhecemos), negando-lhe porém e novamente o seu apoio.
Dois factos são indesmentíveis. Por um lado a D. João II não moveu qualquer animosidade contra o genovês, nem antes nem depois da primeira viagem deste. Por outro, também não se desinteressou das viagens a ocidente, que estavam longe de lhe ser propostas pela primeira vez. O monarca não teve qualquer pejo em avalizar o pedido feito nesse sentido pelo flamengo Fernão de Ulmo (nome porque ficou conhecido em Portugal), que se associou depois a João Afonso do Estreito, simplesmente porque neste caso não estava envolvido o financiamento da expedição pela coroa – bem ao contrário de Colombo, cujas exigências eram tidas por exorbitantes.
Tudo isto reflecte o interesse, ou, mais precisamente, o desinteresse de D. João II pelo caminho marítimo do ocidente. No fundo, e numa só palavra, Colombo era inofensivo para os seus propósitos. Por isso lhe garantiu o acesso a Lisboa em 1488, por isso não obstaculizou a sua saída em 1493.
Não há neste processo sombra de sigilo de Estado: repare-se, facto que por vezes é convenientemente esquecido, que o rei não teve problemas em autorizar um estrangeiro a navegar para ocidente (em relação ao qual ninguém se lembrou até agora de dizer que fosse um espião). Porque já que não havia lugar a qualquer investimento só podia ganhar com o negócio caso a viagem do flamengo resultasse em algo de concreto.
Confrontavam-se portanto duas concepções geográficas bem distintas: a do navegador genovês ao serviço da Espanha e a do monarca português, baseado este nos conhecimentos acumulados pelos anos de experiência das navegações efectuadas e das informações que ia recolhendo (e que permitiram aos seus conselheiros Diogo Ortiz, mestre José e mestre Rodrigo concluir pela não viabilidade do plano colombino quando o ouviram pela boca do próprio e sobre ele se pronunciaram a pedido do rei), e aquele numa reflexão profunda sobre as autoridades que creditou. No quadro dos conhecimentos geográficos do século XV, como dissemos atrás, nada mais natural que a verificação de duas concepções tão opostas, que um e outro perseguiram com idêntica convicção. E a cada um couberam os méritos devidos por isso mesmo.
A primeira viagem de Colombo teve pelo menos o efeito de obrigar a uma redefinição de zonas de influência, desactualizada que estava doravante o tratado das Alcáçovas em face da descoberta da América. Em 1494, ao assinarem o tratado de Tordesilhas, tanto D. João II com Fernando e Isabel obtinham exactamente aquilo que queriam: o primeiro a soberania sobre os mares que haviam de levar as naus portuguesas à Índia, como já sabia de ciência segura; os segundos, a soberania de um novo continente cujas potencialidades se iriam revelar mais tarde (36).
É indubitável que D. João II soube anular a interferência da arbitragem parcial de Alexandre VI (e foi o próprio Jerónimo Zurita, o insuspeito cronista de Fernando o Católico, que a classificou assim no tomo V dos Anales de la Corona de Aragon (37)), ao propor que a linha divisória de Tordesilhas passasse 370 léguas a ocidente do arquipélago de Cabo Verde, e não a 100, como queria o Papa. Esta vitória diplomática encontrou eco do outro lado: a Fernando e Isabel interessava por igual que o diferendo se resolvesse, e daí que concordassem com a ultrapassagem de uma intervenção papal que lhes era favorável, e uma vez que as 370 léguas pedidas por seu primo não afectavam a soberania das novas conquistas.
Foi porém menos afortunado em relação ao termo do grande objectivo que norteou o seu reinado e teria depois consequências tão profundas para a história da Europa, a partir de então voltada definitivamente em direcção a um Oriente longínquo e ignorado: tolhido pelas inúmeras dificuldades que a política interna do reino lhe foi levantando, como a oposição da grande nobreza ou o falhanço da união ibérica, desvanecida em fumo com a morte do herdeiro da coroa D. Afonso, vitimado por um acidente ocorrido pouco depois do casamento com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, a par dos problemas que a gestão do nascente império lhe iam levantando, esperando ainda pelas notícias dos seus viajantes e vendo-se logo depois obrigado a batalhar pelas vantagens diplomáticas sem as quais pouco tinha de seguro, D. João nunca viu partir as naus da Índia. Morreu em 1495, minado por uma doença implacável que o vergou antes de ver cumprida a viagem cuja realização perseguiu tão tenazmente e que preparou quase até ao último momento.
Onze anos depois, em 1506, na miséria e desacreditado, morria dolorosamente, tal como D. João, um homem tão visionário como ele – e foram talvez únicos no seu tempo. Sem nunca ter alcançado as riquezas do Cataio, afirmando até ao último momento que no fundo estava certo (porventura menos convencido que obrigado a manter-se coerente consigo próprio, contra toda a evidência), Colombo abriu as portas do Ocidente mas não viu também cumprido o sonho que foi a mola vital de toda uma vida.
Numa daquelas ironias em que é tão fértil, o destino não permitiu que qualquer dos dois lograsse o sucesso que perseguiram obstinadamente. Mas deixou que, cada um à sua maneira, o príncipe de Portugal e o almirante de Génova forjassem uma realidade que doravante era em tudo diferente daquilo que a Europa podia suspeitar quando anos antes dois jovens de vontade férrea se lançaram à conquista de um mundo que transformaram completamente.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.

Francisco C. Domingues – Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa (Notas)

NOTAS
(*) Este artigo foi inicialmente preparado para um número especial dedicado a Colombo do Bolletino della Società Geografica Italiana, recuperando parcialmente textos já por mim escritos sobre temas que se retomam aqui.
(1) Sobre Correia da Serra o estudo mais recente é de BOURDON, L.: José Corrêa da Serra Ambassadeur du Royaume-Uni de Portugal et Brésil a Washington 1816-1820, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-Centro Cultural Português, 1975.
(2) SARAIVA CARDEAL: Indice Chronologico das Navegações. Viagens, Descobrimentos e Conquistas dos Portuguezes nos Paizes Ultramarinos desde o Principio do Seculo XV, in Obras Completas, tomo V, Lisboa, Imprensa Nacional, p. 48; sublinhado nosso.
(3) BOXER, C.: The Portuguese Seaborn Empire 1415-1825, Londres, Hutchinson, 1969.
(4) ALEXANDRE, V.: Origens do Colonialismo Português Moderno, Lisboa, Sá da Costa, 1979, pp. 55-64.
(5) Sobre o mapa côr-de-rosa, além da obra anterior, NOWELL, C.: The Rose-Colored Map, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1982 (Col. «Memórias», 21).
(6) Manuel Francisco Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa, 2.º visconde de Santarém (1791-1855), viveu uma longa parte da sua vida em Paris depois da derrota dos absolutistas na guerra civil portuguesa de 1832-1834. Aí se dedicou aos estudos históricos, procurando reabilitar o papel dos Portugueses na exploração africana, posto infundadamente em causa por alguns historiadores franceses seus contemporâneos. Dedicou-se em particular à história da cartografia antiga, disciplina de que é considerado o fundador, e no domínio da qual produziu uma vasta obra (estudos e atlas cartográficos) que acaba de ser reeditada na totalidade em Lisboa.
(7) Das obras completas em 43 volumes, boa parte dos quais relativos à história ultramarina, destaca-se a História de Portugal (1879), de extraordinário recorte literário e atenta à documentação disponível, embora em muitos passos hipotecada à visão política que o Autor tinha dos problemas do país no momento em que vivia.
(8) DIAS, C. MALHEIRO (direcção de): História da Colonização Portuguesa no Brasil, 3 vols., Porto, Litografia Nacional, 1921-1924.
(9) CORTESÃO J.: Do Sigilo Nacional sobre os Descobrimentos. Crónicas desaparecidas, mutiladas e falseadas. Alguns dos feitos que se calaram, in «Lusitania», vol. I, 1924, pp. 45-81.
(10) CORTESÃO J.: História dos Descobrimentos Portugueses, 2 vols., Lisboa, Arcádia, 1960-1962.
(11) CORTESÃO J.: A Política de Sigilo nos Descobrimentos, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960.
(12) DOMINGUES F.: A Política de Sigilo e as Navegações Portuguesas no Atlântico, in «Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira», vol. XLV, 1987, pp. 189-200.
(13) CORTESÃO J.: Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Seara Nova, 1940, p. 11.
(14) CORTESÃO J.: A Política de Sigilo nos Descobrimentos, p. 9.
(15) GUEDES M.: O Descobrimento do Brasil, 2.º ed. revista, Lisboa, Vega, 1989. ALBUQUERQUE L.: Os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Alfa, 1985.
(16) De entre o muito que se escreveu a propósito das comemorações do quinto centenário da viagem de Bartolomeu Dias, pode destacar-se ALBUQUERQUE L./ RODRIGUES V./ BARBOSA J.: Bartolomeu Dias. Corpo documental-bibliografia, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1988.
(17) BARATA J.: Estudos de Arquealogia Naval, Lisboa, Imprensa Nacional, 1989, vol. I, pp. 223-248 e vol. II, pp. 13-110.
(18) ALBUQUERQUE L.: Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI, vol. I, Lisboa, Caminho, 1987, pp. 94-96; KHOURY I.: As-Sufaliyya «The Poem of Sofala» by Ahmad Ibn Magid, Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1983 (Col. «Separatas», CXLVIII).
(19) LEITE D.: História dos Descobrimentos. Colectânea de Esparsos, vol. I, Lisboa, Cosmos, 1959, pp. 411-449.
(20) PERES D.: Política de sigilo, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, vol. II, Lisboa, Ática, 1939, pp. 17-21.
(21) DOMINGUES F.: op. cit., p. 201.
(22) GODINHO V.: Dúvidas e problemas àcerca de algumas teses da história da expansão, in Ensaios II, 2.º ed., Lisboa, Sá da Costa, 1978, p. 94.
(23) CORTESÃO A.: Espionagem dos Descobrimentos, separata de «Vida Contemporânea», 1935.
(24) CORTESÃO, A.: Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos Séculos XV e XVI, 2 vols., Lisboa, Seara Nova, 1935.
(25) CORTESÃO, A.: The Mystery of Columbus, in «The Contemporary Review», vol. CLI, 1937, pp. 322-330.
(26) CORTESÃO, A.: Esparsos, 3 vols., Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1974-1975.
(27) PEREIRA, D.: Esmeraldo de Situ Orbis, reprodução da edição anotada por Augusto Epifânio da Silva Dias (1905), Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1975.
(28) PIMENTEL, M.: Arte de Navegar, edição comentada e anotada por Armando Cortesão, Fernanda Aleixo e Luís de Albuquerque, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1969.
(29) Sobre esta questão, A Viagem de Fernão de Magalhães e a Questão das Molucas, Actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975 (Col. «Memórias», 16).
(30) DOMINGUES, F.: A obra técnica do padre Fernando Oliveira (alguns aspectos), in «Arquivo Histórico Dominicano Português», vol. IV/2, 1989, p. 217.
(31) CORREIA, G.: Lendas da Índia, introdução e revisão de M. Lopes de Almeida, vol. I, Porto, Lello & Irmão, 1975, p. 8.
(32) ALBUQUERQUE, L.: Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI, vol. I, Lisboa, Caminho, 1987, p. 79 e seguintes.
(33) PINA, R.: Croniqua Delrey Dom Joham II, edição de Álvaro Martins de Carvalho, Coimbra, Atlântida, 1950.
(34) PINA, R.: op. cit., p. 184.
(35) PINA, R.: op. cit., p. 184.
(36) Sobre o tratado de Tordesilhas e suas consequências, El Tratado de Tordesillas y su proyeccion, Actas do I Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, 2 vols., Valladolid, Universidade de Valladolid, 1973.
(37) ZURRITA, J.: Anales de la Corona de Aragon, tomo V: Historia del Rey Don Hernando El Catholico, Saragoça, Lorenço de Robles, 1610.

Francisco Contente Domingues
«Colombo e a Política de Sigilo na Historiografia Portuguesa», Mare Liberum. Revista de História dos Mares, n.º 1, Dezembro de 1990, pp. 105-116.