Waldemar Paradela de Abreu, editor da Referendo, publica o livro de Augusto de Mascarenhas Barreto O Português Cristóvão Colombo Agente Secreto do Rei Dom João II em 1988 do qual ainda no mesmo ano, em Setembro, se publica uma segunda edição – ou se calhar, mais propriamente, uma segunda impressão.
Pouco acrescentando ao que anteriormente havia sido escrito, mantendo praticamente os mesmos erros e acrescentando outros de sua lavra, o que consta no livro de Mascarenhas Barreto é dado como se de grande originalidade e descoberta do seu autor se tratasse. É uma simples desonestidade intelectual, mas nada de mais, pois há que vender o produto a um grande público que não tem, propriamente, memória de bibliófilo, o que já não acontece com os especialistas.
Precisamente porque os especialistas sabem de bibliografias (e têm mais com que se preocupar do que com o trabalho de amadores a fazerem pela vida) ignoraram o livro de Mascarenhas Barreto – ou pelo menos não foram lestos a cantarem hossanas como o autor desejaria, mas de modo algum impediram que propagandeasse as suas ideias como muito bem quis e entendeu.
Tanto assim foi que a própria Academia de Marinha – uma instituição que contava (e conta) entre os seus membros alguns dos mais prestigiados especialistas em História da Marinha e dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa – lhe abriu as portas para que pudesse aí apresentar as suas ideias. Como se isso não bastasse, a mesma instituição publicou essa comunicação em 1990 (por esta altura também deverá ter ocorrido uma comunicação do mesmo autor na Sociedade de Geografia de Lisboa).
Estas atenções da Academia de Marinha são tão mais louváveis, quanto, desde muito cedo, Mascarenhas Barreto não se coibiu em trazer para a praça pública um debate que deveria processar-se no meio científico. E isso é ainda mais lamentável quando rapidamente começa a recorrer à insinuação, ao insulto e, até mesmo, ao logro.
Fosse uma estratégia comercial, pressa em obter reconhecimento (numa área onde se leva décadas a obtê-lo) ou simples maus-fígados, Mascarenhas Barreto enveredou por uma via agressiva de apresentação e defesa das suas ideias, sem que lhe faltassem lugares onde o pudesse fazer. O jornal
Correio da Manhã facultou-lhe um espaço onde, livremente, apresentou o que lhe ia na alma, sem, durante muito tempo, qualquer oposição ou réplica. O primeiro destes artigos, seis meses depois da segunda impressão do livro, é publicado em 13 de Março de 1989 com o título
Os Caluniadores do Infante D. Henrique e, em pouco tempo, mais de duas dezenas de outros são passados nas rotativas do mesmo jornal.
A. Mascarenhas Barreto, «Os Caluniadores do Infante D. Henrique (I)», Correio da Manhã, 13-3-1989, pp. 2-3.(Clicar na imagem para ampliar)
À parte do amontoado de factos, interpretações e notas pseudo-eruditos, e portanto pouco esclarecedores de um qualquer problema histórico - além de a maior parte deles não serem coevos ou respeitarem à época do Navegador (e que se destinam somente a impressionar os leigos) – sobressai o modo displicente como se refere a alguns dos mais notáveis historiadores portugueses desde Luciano Pereira da Silva até Luís de Albuquerque, ao qual alude depreciativamente várias vezes quando não se lhe dirige abertamente de forma desagradavelmente negligente. Não é que os erros, imprecisões e interpretações alternativas não devam ser apresentados, o que não cai bem é a duplicidade de comportamento, pois na dedicatória que fizera a Luís de Albuquerque desfizera-se subservientemente em encómios, enquanto que publicamente insinua falta de patriotismo, motivações políticas e desmandos na gestão da coisa pública.
A. Mascarenhas Barreto, [«Dedicatória a Luís de Albuquerque»], in Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas..., I, p. 173. (Clicar na imagem para ampliar)
A pretexto da protecção da honra do Infante D. Henrique, serve-se de um jornal de grande tiragem e muito popular para levar a cabo um vingança privada contra aqueles que considera servirem interesses nefastos ao país, defendendo alternativamente uma visão já ultrapassada da História e da política – se é que alguma vez as concepções que defende foram dominantes.
Sem grande subtileza, o auto-intitulado historiador Mascarenhas Barreto, desmascara os por si considerados pseudo-historiadores que ousaram denegrir o mito criado ao longo de séculos em torno da imagem do Infante D. Henrique. No entanto, sem qualquer propósita relação com o Infante, mete Cristóvão Colombo ao barulho – afinal a (quase) sua grande tese – e lá vem o Salvador Fernandes Zarco cujo nome descobriu depois de outros terem inventado um Cristóvão de Cólos, um Simão Palha ou um Salvador Gonçalves Zarco – outros agora querem-no D. Diogo,
o Zombie, ou ainda Salvador Henriques Zarco, mas enfim...
Neste esforço acaba por se esquecer de explicar ao grande público como chegou a tão fabulosa descoberta, mas há que deixar os leitores na expectativa para que comprem o livro.
Também não explica aqui, nem noutro lado, porque é que só ele usou uma sigla cabalística e mais ninguém antes ou depois dele.
A. Mascarenhas Barreto, «Os Caluniadores do Infante D. Henrique (II)», Correio da Manhã, 14-3-1989, pp. 2-3.(Clicar na imagem para ampliar)
Como quase todos os amadores que incautamente metem as mãos no passado, Mascarenhas Barreto revela grande dificuldade em lidar com o tempo histórico. A diacronia e a sincronia estão completamente ausentes no discurso, na interpretação e no uso dos conceitos. Como consequência cai no pecado mortal do historiador: o anacronismo. Mas isso não o impede mostrar complexos negativos em relação aos graus académicos e ao ofício de historiador enquanto actividade individual cujo mérito é de reconhecimento exclusivo pelos pares. Ao amesquinhá-los, tanto nestes artigos como no que publicará no
Diabo, está a manifestar o sentido de inferioridade que continuará a afligir os partidários destas ideias pouco consistentes mais de vinte anos depois de dar início a estas diatribes.
Parafraseando um grande professor, um licenciado em Direito intitula-se jurista; um em Economia, economista, etc. No entanto, os licenciados em História (bem como a maior parte dos que se dedicam à História) não se intitulam historiadores e arranjam sempre uma qualquer outra designação para definir o seu trabalho. Na comunidade historiográfica o grau académico detido e a proveniência do mesmo são pouco relevantes, pois a competência manifestar-se-á pelo trabalho desenvolvido. Assim sendo a designação historiador é geralmente um atributo, como que um título de reconhecimento, dado aos autores já falecidos e de mérito firmado.
Se Mascarenhas Barreto, com toda a legitimidade, queria ser um historiador tinha de esperar para ver o seu trabalho reconhecido como sendo historiográfico; tinha de sujeitá-lo ao normal processo de reconhecimento deste ofício, que é a discussão e a crítica pela (e dentro da) comunidade historiográfica. Mas o mais notável de tudo isto nem é o esforço propagandístico (insultos à parte) de Augusto Mascarenhas Barreto. O espantoso é que vinte anos depois ainda haja quem leve este disparate a sério, chegando ao ridículo de, muitas vezes, chamar a si a autoria de ficções que, na realidade, são pertença de outros.