sexta-feira, 25 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (5)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 49-59.


Texto Integral




IV
D. ISABEL MONIZ, TUTORA DE SEUS FILHOS.
A VENDA DE PORTO SANTO A PEDRO CORREIA. — UMA QUESTÃO DE FAMÍLIA.
A VINDA DE CRISTÓVÃO COLOMBO PARA A MADEIRA.
ÉPOCA DO SEU NASCIMENTO; SUA ORIGEM E A NATURALIDADE.
CASAMENTO DE COLOMBO E DE D. FILIPA MONIZ DE MELO.
A VIDA OBSCURA DOS DOIS CÔNJUGES.
NASCIMENTO DO SEU ÚNICO FILHO E MORTE DE D. FILIPA.



URPREENDIDA pela viuvez, D. Isabel Moniz pouco tempo vacilou entre as recordações de seu marido, que a prendiam a Porto Santo, e a impossibilidade de continuar a viver na capitania, tendo de prover a sua subsistência e das duas crianças que lhe ficaram, por um trabalho de administração imensamente superior às suas forças de mulher, e que tão caro custara ao infeliz Bartolomeu.
O filho mais velho, que tinha o mesmo nome do pai, contava apenas sete anos de idade e a irmãzinha Filipa menos dois do que ele. Verdade é que para a administração da capitania durante a menoridade do herdeiro, o 2.° Bartolomeu, fôra D. Isabel nomeada tutora conjuntamente com seu irmão Diogo Gil Moniz; mas este preocupado com os negócios da sua casa, que o obrigavam a uma vida errante, pouco tempo dispunha para assistir às exigências duma tutoria, que não podia dispensar a presença enérgica dum homem.
Nestas circunstâncias imperiosas, D. Isabel Moniz deixou Porto Santo e recolheu-se com seus filhos ao Machico, instalando-se em casa de seu pai Vasco Martins Moniz, sempre extremoso para com a filha durante a vida do marido e agasalhando-a depois na viuvez, a ela e aos netos, com os recursos da sua fortuna e os tesouros do seu coração amantíssimo.
Se até ali a exploração de Porto Santo não se recomendava pelas seus lucros, tendo aliás à sua frente um homem do temperamento nervoso de Bartolomeu Perestrelo, faltando ele ou quem o substituísse pelo menos com metade do afã e ousadia, dessa época em diante a ilha tornar-se-ia um sorvedouro mais improdutivo de cuidados e de dinheiro.
Temendo estes resultados negativos que, sobre o gravâme da situação económica do casal, far-se-iam sentir no futuro de seu filho, D. Isabel combinou com o outro tutor vender-se a capitania a Pedro Correia da Cunha, cunhado do menor, pois que, como vimos, era casado com D. Izeu Perestrelo, filha do segundo matrimónio de Bartolomeu.
O preço desta transacção diz-se ser de 300$000 réis em dinheiro de contado, pago por uma vez, e réis 30$000 de juro cada ano. Por outro lado o infante D. Henrique, confirmando o acto da venda por carta de 17 de Maio de 1458, fala de uma tença de 10$000 réis.
«... a dita ilha cuja jurdiçom he minha, a meu prazimento se convieram e trautaram por parte do dito moço com Pero Correa fidalgo da minha casa, o mostrador desta, em tal maneyra que a dito Pero Correa leixou ao dito moço dez mil réis, que de mim avía cada hum anno de tença por seu casamento por mil dobras a rezom de cento e vinte réis por dobra segundo hordenaçom do reyno».
D. Afonso V, ratificou a carta de seu tio em 17 de Agosto de 1459.
Livre de cuidados pelo trespasse da capitania de Porto Santo, D. Isabel Moniz, que teria então pouco mais de vinte e cinco anos de idade, fugiu a novas afeições e dedicou-se exclusivamente ao amor e educação de seus filhos. Para isso deviam-lhe ter valido de muito os elementos de que dispunha na casa paterna, onde se encontrava o que havia de mais distinto na carreira das armas a par de homens de muito sofrível cabedal literário para aquele tempo.
Criado neste meio poderosamente educativo o pequeno Bartolomeu revelou bem cedo a sua coragem e inclinação pela vida militar, partindo para as guerras que continuamente trazíamos na África, ora por ambição de novas conquistas, ora por necessidade de manter contra as sublevações locais os domínios conquistados.
Ainda que as posses de D. Isabel Moniz fossem pouco folgadas, envidou todos os sacrifícios para que nada faltasse ao filho nas incertezas da fortuna que ia procurar, e ele se apresentasse armado e equipado, incluindo outros acessórios mais ou menos dispendiosos de representação, pelos quais era costume aquilatar-se a procedência fidalga e opulenta dos mancebos que iam servir a pátria e o rei.
Bartolomeu Perestrelo veio à corte, escudado pelas relações influentes de Vasco Moniz, seu avô e pela memória simpática de seu pai, embarcando aqui numa armada prestes a fazer-se de vela para Larache, quando ele chegou a Lisboa. ([1])
Voltando à Madeira depois de cinco anos de ausência, aproximadamente, e instigado por seu cunhado Mem Rodrigues de Vasconcelos, promoveu uma demanda a Pedro Correia para anulação do contracto de venda de Porto Santo, feita por sua mãe e por seu tio Diogo Moniz. Mercê dos meios eficazes empregados por Mem Rodrigues a causa foi julgada a favor de Bartolomeu, e este reintegrado na posse da capitania por despacho de 15 de Março de 1473, devendo com os rendimentos da ilha embolsar o cunhado das importâncias dele havidas até então, conforme o estipulado no respectivo contrato. ([2])
D. Isabel Moniz devia com razão ficar contrariada e sentida por este acto repentino e um tanto excepcional de seu filho, que, esquecendo os sacrifícios maternais para se deixar levar pelas sugestões vingativas de Mem Rodrigues contra Pedro Correia, em vez do abraço filial suspirado com o seu regresso, reprovava-lhe tão formalmente os actos da sua tutoria.
Da mesma maneira que D. Isabel, muitas viúvas, lutando com falta de meios e com outras dificuldades para a administração de senhorios herdados por filhos menores, trespassavam a propriedade a troco de benefícios mais ou menos equivalentes e que, quando lhes não permitissem um desafogo económico, eram líquidos de despesas de custeio, de trabalhos e consumições para arrecadarem as rendas. Mesmo em casos especiais que conhecemos, e nos quais a importância das transacções representava apenas bom negócio para o comprador ou era desviado do seu fim legítimo, o primeiro passo dos filhos, chagados à maioridade, era declarar a sua conformação com os actos da tutoria e pedir ao rei que os validasse, prevenindo assim quaisquer reclamações dos futuros herdeiros.
Por isso avaliamos bem o grande desgosto de D. Isabel Moniz, como as altas pressões que determinaram D. Afonso V a reconsiderar em 1473 sobre o seu acto de confirmação de 1459.
Separado Bartolomeu Perestrelo menos amorosamente de sua mãe, ficou esta com uma única compensação aos pertinazes dissabores da sua vida. Restava-lhe sua filha D. Filipa, cujo carinho lhe mitigara as saudades do filho à aventura em África; e com ela se encontrava outra vez a sós nesta mesquinha intriga de família.
Teria então D. Filipa Moniz de Melo de vinte a vinte e um anos, não lhe passando talvez pelos devaneios dourados dessa idade o pensamento de vir a ser a preferida do coração de um homem, a quem os destinos reservavam uma importância histórica e um nome universal, que ele também, por certo, estava longe até de fantasiar na obscuridade profissional dos seus primeiros anos.
Referimo-nos a Cristóvão Colombo, que em 1474 veio para a Madeira ([3]) trazido na grande corrente de patrícios seus — os Spinolas, Cezares, Uzadamari, Cataneos Salvagos, Lomellinos, Dorias, Grimaldi, etc., etc., corrente derivada, sobre tudo, durante o meado e o declínio do século XV das costas da Itália para aquele arquipélago, e daqui para o continente.
Como eles, Colombo vinha em busca de fortuna a Portugal, de cuja atracção sobre os povos da Europa já nos ocupámos mais atrás com a possível particularidade. Oriundo de uma família operária, que teve por berço o vale de Fontanabuona, confins de Génova, o festejado navegador nasceu perto da cidade deste nome, onde seu pai Domenico Colombo tinha já fixado residência em 1430, exercendo o mister de tecelão de lãs (lanerio) que foi o meio de vida de quase todos os membros desta família, incluindo o próprio Cristóvão Colombo antes de partir para Portugal. ([4])
Revezes económicos ou a necessidade de arranjar o pecúlio indispensável para a viagem de seu filho, ou conjuntamente os dois motivos, obrigaram Domenico a vender em 1473 um ou dois prédios de casas que tinha em Génova, achando-se nesse ano com sua família em Savona, onde Cristóvão figura pela última vez como testemunha num acto judicial de 7 de Agosto daquele mesmo ano.
Ao tempo da sua vinda contava ele trinta e oito ou vinte e oito anos de idade, se aceitarmos dum lado a afirmação de André Bernaldes de que Colombo, seu amigo e hóspede, na época do seu falecimento, 1506, contava setenta anos, ou se do outro nos ativermos mais confiadamente a investigações modernas, que dão o almirante nascido em 1446.
Aportado à Madeira, o ousado genovês tratou logo de se relacionar com as famílias importantes do arquipélago, utilizando a camaradagem dos seus outros conterrâneos já ali estabelecidos e insinuando-se pelo seu todo simpático, pela sua linguagem fluente em que muitos viram provas de ilustração, e, finalmente, pela conhecida predisposição fraternal para com os imigrantes italianos, que haviam provado bem, quer no granjeio da vida, pelo que tocava à benevolência dos chefes de família, quer nas aventuras amorosas e formosíssimos produtos de cruzamento, quanto às raparigas, que viam com desespero a galharda mocidade portuguesa debandar para a África, morrendo por lá solteira, ou voltando branqueada pelas intempéries do oceano e dos combates.
A própria D. Filipa Moniz de Melo que se diz fôra moça muy lynda sintetizava a casa na aliança dos Monizes e dos Perestrelos, já lotada também com o sangue dos Teixeiras; e este esbocêto rápido, incidental, de D. Filipa feito por um genealogista, revela-nos um casamento de simples afeição com Cristóvão Colombo.
A despeito do muito que procuramos, não vimos sequer uma referência clara a dote que ela houvesse recebido, ou a bens herdados de seu pai. E o que podia o velho Bartolomeu ter-lhe deixado, ele que enterrou tudo em Porto Santo? A mãe, D. Isabel Moniz viu-se impelida a abrigar-se na casa paterna para criar e educar convenientemente os dois órfãos; o avô, o velho Vasco Moniz, apesar de muito rico tinha nada menos do que dezasseis filhos, os bastantes para torná-lo pobre; por fim, o cofre real também, ao que averiguamos, não se abriu para animar o futuro daquele enlace tão simpático.
É possível, porém, que nalgum recesso, a que não pudemos chegar, se encontrem dados que modifiquem a nossa opinião. Se vierem a aparecer, é menos uma impressão triste que nos causa o viver doméstico de D. Filipa Moniz e de seu marido.
Por outra parte, o que trouxe Cristóvão Colombo de Génova? Se alguma coisa lhe coube no produto da venda feita pelo pai nas vésperas da sua partida, pouco lhe podia sobejar das despesas de viagem para se manter nos primeiros tempos até que a fortuna lhe sorrisse ou encarreirasse num meio de vida qualquer. E o caso é que ele devia ter mourejado, já para se sustentar em solteiro, já para acudir parcamente às exigências indispensáveis do seu lar conjugal. Desenhou cartas de marcar? Abriu casa de venda e hospedaria? Exerceu qualquer outro ramo de actividade, que se venha a conjecturar ou a descobrir? Eis de certo uma questão importante para o estudo de Cristóvão Colombo, descobridor da América; mas de ordem muito secundária para Cristóvão Colombo, marido de D. Filipa Moniz de Melo.
Na pobreza singela, com que os dois se nos apresentam, vemo-los atraídos por uma afeição mútua, que os laços do matrimónio vieram consagrar em 1475, com todas as probabilidades. ([5]) o acto religioso celebrou-se no Machico e parece que em seguida os dois esposos foram em companhia de D. Isabel viver para o Funchal, residência preferida por Colombo, pois que assim ficava em contacto mais directo com todo o movimento marítimo. ([6])
Em 1476 nasceu Diogo Colombo, único fruto deste matrimónio, cuja pequena fecundidade tem sido para nós objecto de reparo, atendendo a procedência sadia de Colombo e de D. Filipa e ao que alguns escritores nos deixam entrever a respeito da época do falecimento desta senhora.
No trabalho genealógico de Pina Loureiro, cujos 28 volumes de original nos têm servido de muito, acabamos de ver confirmada a suspeita de que a morte da mulher de Colombo tem de se aproximar bastante do nascimento de seu filho. Adiante do nome de D. Filipa lê-se a notícia sumária: que pouco viveu depois do nascimento de seu filho. Morreria ela de parto? Gozaria apenas alguns dias ou semanas da ventura inefável de ser mãe?
Aquela espécie de revelação, que de per si não pode precisar uma época, há um facto da vida de Colombo que se associa com um certo valor lógico para torná-la menos vaga, e o qual também nos havia impressionado. É o da partida do arrojado navegador para as regiões árcticas em 1477.
Note-se: Colombo casou em 75, nasceu-lhe um filho em 76 e partiu para uma viagem arriscadíssima em 77, sem que a isso a houvessem obrigado quaisquer compromissos notórios ou planos traçados de antemão e amadurecidos. A sucessão rápida dos três factos tem o que quer que seja de misterioso pela precipitação do último. É pouco aceitável tanto ao raciocínio como ao coração que a vida pacífica de Colombo e de D. Filipa, vendo a sua união abençoada e o seu pobre lar em festa pelo nascimento dum filho, fosse no ano seguinte bruscamente perturba da por uma longa separação sem um motivo súbito e imperioso.
A frase acima transcrita e o facto desta separação um tanto violenta concorrem em estreita harmonia para se fixar a época da morte de D. Filipa entre a do nascimento de seu filho e a da viagem de seu marido aos mares do norte.
A avó do recém-nascido substituir-lhe-ia a mãe no amor e cuidados, de que a morte o privara aos primeiros sorrisos da infância; o pai, lancinado profundamente no seu coração de esposo apaixonado, tomara uma das resoluções extremas, em que desfecham as grandes crises do sofrimento moral.
Como quer que fosse, é inegável que D. Filipa morreu muito nova ainda. Mesmo que admitíssemos livremente a hipótese dela haver vivido até às proximidades de 1484, em que Cristóvão Colombo passou ao reino vizinho, não iria além dos 30 anos de idade. Mas inclinamo-nos a crer com o possível fundamento que não teria mais do que vinte e cinco.
Foi bem cedo para morrer, principalmente quando o futuro reservava nos seus segredos intangíveis dias de glória e de fortuna, em que lhe cabia uma parte para compensá-la das privações padecidas pela desventura pertinaz de seu pai e por amor do homem pobre, como ela, a quem ligou os seus destinos.
Faleceu D. Filipa Moniz de Melo no Funchal e, segundo se conclui de vários elementos, foi sepultada na sé da mesma cidade. ([7])

_____________
[1] Para que as notas não avolumem mais do que o texto, deixamos de referir-nos a muitos documentos curiosos, que serão publicados se viermos a concluir o trabalho, de que extractamos o presente opúsculo. Todavia, como espécimen dos progressos da ciência náutica naquela época, damos na íntegra o parecer acerca do rumo mais curto, que os navios tinham de seguir para Larache.
«Senhor = eu estyve com os pylotos que em esta cydade estam partycando sobre a nosa hyda do cabo de Santa Maria. Senhor, Larache demora a rota ao sueste e ca-le ao susueste e Azamor imos tomar por o sul bj legoas a borlavento da banda de Anafe e se majs o vosa alteza qyser que a vosa armada va a borlavento sera neçesaryo governarmos hüa syngradura a qarta do sueste e hyremos tomar o cabo do Camelo que som doze legoas de Azamor e qando achegarem a fundo de çem braças reconheceram a terra bem e depoys da terra conhecyda iram por aqele fundo ate sobre Azamor e depois que vyrem Azamor aguardaram mor bonança e bom vento e bõa maree pera irem dentro. — estes pylotos he Joham da Rua — Joham Gonsalvez — Gonsalo Pynto — Antonio d’Oliveira — Symam Lourenço — Gaspar Fernandez = Gaspar Affonso.»
[2] Não encontrámos provas de Pedro Correia da Cunha haver fixado a sua residência em Porto Santo, durante o tempo da sua capitania, nem tão pouco na ilha Graciosa, de que foi donatário, e para onde alguns escritores dizem que ele partira em 1485. Pelo contrário, o que achamos de mais positivo é que ele viveu na sua quinta da Charneca, termo de Lisboa, onde também faleceu em 1499. Igualmente não vemos justificado o epíteto de aventureiro que se deu a Pedro Correia e a fama de navegador, que lhe atribuíram.
[3] A época da vinda de Colombo varia segundo diversos escritores de 1470 a l474, prevalecendo este último ano, tanto em vista de muitos factos da sua vida, que não cabem no ponta de vista especial destas notas, como do que em seguida se vai ler.
[4] Consta de alguns actos onde ele figurou de testemunha com declaração desse ofício.
[5] Em algumas datas concordamos com o trabalho consciencioso do erudito académico D. José Maria Asensio — Los restos de Cristóval Colon están en la Habana — Sevilha, 1881.
[6] Porto Santo também disputa a glória de haver sido residência temporária de Cristóvão Colombo. Não atinamos com a causa que o houvesse atraído para ali. A sogra e a mulher estavam desligadas da capitania desde 1458 a 1473 pelo trespasse desta a Pedro Correia, e por certo que depois da sentença, que na última data anulou a favor do filho a venda feita por D. Isabel, esta não lhe iria pedir hospedagem.
Colombo, mal comparado com o Santo Lenho, apesar das suas colossais proporções históricas, saiu pequeno para as muitas terras, que lhe disputam o berço, a casa e o túmulo.
[7] A vida de Colombo em Portugal e a de sua família foram sempre romantizadas até pelos únicos que nos podiam fornecer dados mais seguros e verdadeiros para reconstituí-las. Neste caos, porém, vai-se fazendo alguma luz. Dos seus escritos autobiográficos, dos que se atribuem a D. Fernando seu filho bastardo e das declarações de D. Diogo Colombo seu filho legítimo, estão hoje documentalmente contestados vários pontos, o que nos obriga a pôr de reserva aqueles, sobre que a história ainda não pronunciou o seu veredictum.
A lenda dos seus amores em Lisboa, o falecimento de sua mulher nesta cidade e a sua sepultura numa capela do Carmo, tudo isso fica tão deslocado na engrenagem de épocas, pessoas, lugares e factos averiguados, que não necessita de grandes esforços para cair pela base.
Ainda diligenciámos ver se os restos mortais de D. Filipa seriam trasladados da Madeira para aquele convento. Não há notícia de tal, apesar dos registos de enterramentos se encontrarem ainda hoje sofrivelmente completos. Daria, pois, talvez origem a essa versão o saber-se da existência da capela de Nossa Senhora da Piedade fundada no Carmo por Gil Aires, casado com D. Leonor Moniz, da ilustre família da sogra de Colombo.


sexta-feira, 18 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (4)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 39-48.



Texto Integral






III

A ILHA DE PORTO SANTO E A SUA COLONIZAÇÃO.
TRABALHOS E SACRIFÍCIOS DO PRIMEIRO DONATÁRIO DESTA ILHA.
BARTOLOMEU PERESTRELO: SUA VIDA ATRIBULADA, ALIANÇAS MATRIMONIAIS, MORTE PREMATURA E DESCENDÊNCIA QUE DEIXOU.





EGUNDO a crónica de Azurara, sub­sidiada por outras obras, pouco tem­po se demorou Bartolomeu Perestrelo na ilha de Porto Santo, para cuja colonização ele partira em com­panhia de diversos indivíduos, emba­lados dos mais fagueiros sonhos de fortuna.
O desengano, que o moço Bartolomeu recebeu, visitando os seus futuros domínios, foi o mesmo em que caíram muitos outros, tanto nas ilhas como no continente, aferindo a largueza da munificência régia apenas pela decantada extensão do território, pelas no­tícias imaginosas da sua fertilidade e pelo nome pom­poso do senhorio. Só conheciam o valor do que haviam impetrado, quando os encargos, a que se comprometeram, ascendendo a verba muito superior ao rendi­mento local, obrigavam-nos a declinar a exploração por parcelas a troco de rendas insignificantes, ou a rela­xá-las ao abandono, de que ainda recentemente se encontravam copiosos vestígios por muitos pontos do país. Mesmo hoje, muita gente quando vê a lista de doações, antigamente havidas pelos que prestavam serviços públicos, e segue o inventário descritivo de cada uma delas, não sabe qual admirar mais — se a liberalidade perdulária do doador, se a fortuna fabulosa do donatário. Entretanto, por livros de receita e despesa, róis e outros documentos da época, e com os meios científicos, de que actualmente dispomos para valorizar essas mercês em relação ao capital de exploração e ao rendimento agrícola e industrial, é fácil conhecer quanto tem de hiperbólicas na maior parte dos casos as concepções dos interesses auferidos por aqueles, cujo trabalho se remunerava com senhorios, capitanias, etc.


Porto Santo - Zimbralinhos
(Autor: Marcial Fernandes)

Levado pela sugestão das apregoadas bondades da ilha descoberta, Bartolomeu não soube o que pediu, talvez ao contrario de Zarco e de Tristão, cuja segunda viagem mais racionalmente se explica pelo propósito de prosseguirem na empresa começada, depois de deitar os colonos em Porto Santo, ou pelo menos, sondarem e reconhecerem aquelas paragens do Atlântico, do que de se enterrarem numa ilha, cuja área e condições geológicas, embora apreciadas de relance, não os deveriam ter seduzido, como se escreveu.
O descobrimento ([1]) imediato da Madeira, que foi dividida por ambos, e na qual se fixaram como um termo satisfatório das suas excursões marítimas, cujo alvo reconhecido eram as costas da Guiné, ajuda-nos em reflexões diversas das que restritamente nos inspira o texto dos cronistas.
Bartolomeu não tardou a conhecer, que a imaginação o traíra, e que dera excessivas largas a sua credulidade. O confronto de Porto Santo e da nova ilha encontrada por Zarco e Tristão, incomparavelmente superior à primeira, pelo seu aspecto atraente e pela prometedora valentia da vegetação, acabou de o desanimar. ([2])
Voltou pois ao reino mais provavelmente depois do encontro da Madeira. A causa desta retirada e simultaneamente da partida dos dois outros companheiros para a segunda ilha, é atribuída a uma praga daninha de coelhos, que se desenvolveu na ilha, por nela soltarem uma coelha com crias, havidas durante a viagem. No ano seguinte, se é que mediou um ano entre a ida e a volta de Bartolomeu, já matarom muy muytos, nom fazendo porem mingua para os estragos, que esmoreciam os colonos, inutilizando-lhes os trabalhos agrícolas.

Coelho Bravo
(Oryctolagus Cuniculus Algirus)

Este extraordinário poder de procriação, diante do qual a zoologia se curva impotente para explicá-lo, a nós, profano na ciência, não nos causa maior assombro. Os nossos antepassados tinham uma ingenuidade de crer, sem ver nem discutir, que, sob o ponto de vista da higiene espiritual, é simplesmente para causar inveja nestes tempos atribulados de malícia e de suspeição.
A história dos coelhos, que calou piamente no ânimo dessa boa gente, hoje não satisfaz. Melhor e mais verosímil fará que nos descrevessem a ilha de Porto Santo com o seu solo areento, impróprio para muitos géneros de cultura e sobre tudo para a indispensável arborização, a sua falta de água potável, etc. a impressão desagradável, que causaria esse ermo a um rapaz muito novo, costumado à vida da corte e que nem ao menos levara uma companheira, um dos requisitas essenciais ao verdadeiro colono e um anódino contra a nostalgia da pátria, e outras coisas idênticas, que seriam mais aceitáveis e incontroversas, e menos pueris, do que uma praga de coelhos desenvolvida num ano, por uma ninhada ainda de leite.
Encarada logicamente a questão por aquele lado é que vemos Bartolomeu Perestrelo regressar ao reino e alguns anos depois partir novamente na qualidade de provedor de Porto Santo, onde então com maiores probabilidades se encontravam bastante multiplicados os temíveis roedores.
Pode ser que para isso ele houvesse reconsiderado em vista de circunstâncias imperiosas, tais como a de uma boa notícia dos trabalhos ali continuados pelos seus companheiros, do proporcionamento de capital humana e monetário mais animadores do que os que levou na sua primeira viagem, e, finalmente, a de ter contraído matrimónio com D. Margarida Martins, tomando em seguida a resolução de tratar do futuro a todo o transe.
Porto Santo, com a vizinhança da Madeira que começou a prosperar a olhos vistos, tornou-se também mais atraente e acompanhada, encontrando à mão muitos recursos, que as suas ingratas condições locais não proporcionavam desde logo. Nem mesmo pelo decorrer do tempo as transformações e correctivos, por que passaram os domínios de Bartolomeu, graças a um insano trabalho, que o fez baquear bem cedo, e a sacrifícios pecuniários pouco mais do que inúteis, nunca a ilha se extremou por uma linha de autonomia, económica e etnográfica, que provasse os seus suficientes progressos materiais e morais; quanto mais nos primeiros anos da sua colonização.
A povoação da Madeira não foi, por certo, alheia ao concurso de causas, que determinaram Bartolomeu Perestrelo a sair novamente de Lisboa e a demandar Porto Santo. Uma das provas é a pouca estabilidade, que ele tinha nesta ilha, onde fixara residência, ou, melhor, estabelecera casa.
Partido para ali com sua primeira mulher, entrevemo-lo não poucas vezes no Machico, no Funchal e no reino, a tratar dos seus interesses locais, desenvolvendo uma actividade prodigiosa em angariar materiais agrícolas, atrair a emigração, proporcionando-lhe os instrumentos do trabalho, e alcançar do cofre real algumas mercês rendosas, que o ajudassem no oneroso custeio da beneficiação de Porto Santo.
No maior ardor das suas lides, um doloroso acontecimento veio enlutar Bartolomeu Perestrelo, a quem o seu negro horóscopo parecia poupar momentaneamente para surpreende-lo depois mais implacável aos primeiros vislumbres de ventura.
Por um dos documentos, sobre que estamos a trabalhar, conclui-se que D. Margarida Martins, sua mulher, pouco viveu além 1431. O último vestígio, que possuímos, da vida desta senhora é uma carta de D. João I, de 8 de Junho desse ano, dando a ela e a seu marido umas casas de foro, na Rua Nova, junto à Porta da Erva.
Deste casamento não houve filhos, que nos conste passando Bartolomeu a segundas núpcias com D. Brites Furtado de Mendonça, da bem conhecida família deste apelido, que também ocupa um lugar distinto na história do arquipélago.
Do segundo matrimónio conhecem-se três filhas, todas casadas com homens importantes. A primeira D. Catarina Furtado de Mendonça, foi mulher de Mem Rodrigues de Vasconcelos, comendador do Seixo; a segunda, D. Filipa de Mendonça Furtado, desposou-se com João Teixeira, ([3]) filho terceiro de Tristão Vaz, primeiro capitão donatário da jurisdição de Machico; a terceira, D. Izeu Perestrelo, ligou os seus destinos a Pedro Correia da Cunha, ([4]) capitão donatário da ilha Graciosa, e ao qual teremos mais adiante de referirmo-nos.
Enviuvando segunda vez, Bartolomeu Perestrelo, que ainda estava um homem relativamente novo, passou a terceiras núpcias com D. Isabel Moniz, filha de Vasco Martins Moniz, que a esse tempo vivia em Machico, com toda a sua grande casa, como se viu quando tratámos dos Monizes.
Esta nova aliança, a mais distinta e directamente vinculada ao nosso fito histórico, revela de certa forma a importância moral de Bartolomeu e a confiança, que inspiravam a seriedade do seu trato e o seu amor ao trabalho. Só quem conhece particularmente pela velha papelada a fidalguia orgulhosa dos Monizes, disputada em aliança pelas melhores casas da Madeira e do continente é que pode avaliar a segurança convicta com que traçamos esta nota biográfica.
D. Isabel, a julgar pela idade de seus irmãos, teria quando muito 18 anos, ao deixar a casa paterna, onde a rodeavam todas as comodidades possíveis, para seguir com seu marido para a ilha do Porto Santo, sendo-lhe companheira devotada durante os poucos anos que ele ainda viveu.
Dissemos algures que Bartolomeu não soube o que pedira, nem tão pouco em quanto estipulara o prémio dos seus serviços ao infante D. João. Com o seu génio activo e empreender julgou que transformaria os penhascos e areias de Porto Santo em húmus dum pomar, que lhe desse frutos e sombra na velhice. Enganou-se como tantos outros, que se aniquilaram obscuramente a fecundar alguns retalhos do país, perdidos por esse oceano, sem um dia de gozo na vida nem um pedaço de pão para a orfandade dos filhos.
Quanta gente não terá ligado a sua memória a ideia típica, corrente, desses feudatários, estatelados ociosamente em rambotins de nababos, acenando com ouro a todas as voluptuosidades, que pode arquitectar uma grande imaginação, servida pelo temperamento mais sensual?
Infeliz Bartolomeu Perestrelo! Infeliz nas lutas da vida e na maneira pouco respeitosa, por que a história lhe recolheu o nome. A glória de haver encontrado casualmente um monte emerso no meio do mar foi sempre tudo, mesmo em face dum labutar atlético de perto de 30 anos para revolver-lhe as entranhas, corrigi-lo, sangrar-lhe as veias profundas, fecundá-lo com o suor e muitas vezes com o próprio sangue.
E esta estranha concepção dos meios mais conducentes à glorificação individual exemplifica-se cruamente na sombra histórica do donatário de Porto Santo. Têm-se passado anos de teimosia inútil em deletrear das páginas brumosas dos cronistas uma palavra, uma sílaba, que robusteçam a suposição de que ele foi um dos que atravessaram pela primeira vez as cento e tantas léguas de mar, que vão de Lisboa ao arquipélago da Madeira.
Para nobilitá-lo, inventou-se que ele veio de Espanha para Portugal em 1428 com a mulher de D. Duarte, e logo abaixo que ele foi companheiro de Zarco e de Tristão no descobrimento de Porto Santo em 1418 (!); quando o que há de mais seguro a respeito da sua nobreza é a justificação feita por seu pai Filippone Palestrello em 1399. Para glorificá-lo como homem do mar chega-se até fantasiar manuscritos que deixou e conselhos que deu a seu genro Cristóvão Colombo, estando provado que ele nunca conheceu o homem, com quem havia de casar a sua filhinha Filipa, que ficou órfã de pai aos 5 anos de idade.
Em suma, para que Bartolomeu Perestrelo tivesse duas linhas de panegírico, mais apetecido pelos seus sucessores do que por ele, atento o seu viver atribulado, era necessário reconhecê-lo por nobre e principalmente caracterizá-lo como navegador, segundo a moda predominante da época em que viveu.
Porfiou-se em construir-lhe na areia um pedestal de glórias, ao passo que nem um olhar se deitou para a sua existência cheia de desgostos e trabalhos, e cuja resignação nos primeiros, constância e honradez nos segundos, são títulos muito mais seguros de direito à nossa admiração, do que o feito casual que se procura atribuir-lhe.


Porto Santo

Ao donatário de Porto Santo não pertence empunhar a palma de haver descoberto a sua ilha; mas assenta-lhe legitimamente na cabeça o resplendor de mártir do trabalho, uma das consagrações sociais mais valiosas de todos os tempos.
A morte veio colhê-lo no seu posto, por volta de 1457, tendo ele pouco mais de 50 anos de idade e deixando a família em precárias condições económicas, pois que a sua capitania absorvera-lhe tudo desde os dotes de suas mulheres e benefícios, que por diversas vias alcançou, à própria saúde sem que a tanto capital ali enterrado correspondesse um rendimento sofrível para a manutenção da viúva e de seus dois filhos, Bartolomeu e Filipa, órfãos de pai ainda bem tenra idade.
Faleceu Bartolomeu Perestrelo na vila da Baleeira, da ilha do Porto Santo, e pelo que se apura de elementos mais fidedignos parece que ficou sepultado na igreja paroquial de Nossa Senhora da Piedade.

___________
[1] Sublinhámos a palavra, porque Azurara conta singelamente, que Tristão e Zarco se passaram do Porto Santo à ilha da Madeira, que se avista em dias claros. Por outro lado, também é de notar que o denso arvoredo, que cobria a última, pela própria respiração vegetal e pela evaporação da humidade sob ele depositada, devia ocasionar prolongadas perturbações atmosféricas, que não permitiriam então avistá-la do Porto Santo, como hoje.
Barros, mais ilustrado do que Azurara, lembra este fenómeno, sem que na essência do facto do descobrimento haja contradição entre ambos. Pelo contrário, explica-no-lo o primeiro, dizendo que se os vapores às vezes se confundiam com nuvens, outras vezes deixavam suspeitar a terra; suspeita confirmada, sobre tudo, pela posição constante e aparecimento do nevoeiro em ocasião de limpidez nos outros pontos do horizonte.
Por conseguinte, a simples passagem duma ilha para a outra tem todos os visos de verdadeira; ou a existência da segunda fosse averiguada do Porto Santo, ou apenas deduzida pela observação judiciosa dos fenómenos atmosféricos. Tê-la-iam suspeitado Zarco e Tristão na sua primeira viagem? Não o sabemos.
O alvoroço da descoberta fê-los voltar logo talvez, como muitos navegadores em casos idênticos, sem ao menos examinarem o achado, que levou saúde e economias ao pobre Bartolomeu, quanto mais perscrutar serenamente o horizonte.
[2] Parece que na sua primeira viagem Bartolomeu Perestrelo levava já a provedoria de Porto Santo, o que de certa forma o prendia à ilha, desvanecendo-lhe qualquer esperança de vir a compartilhar do novo achado, que Zarco e Tristão trataram logo de dividir entre si, tendo o cuidado de definir então melhor as suas garantias de povoadores da Madeira, do que o fizeram a respeito do Porto Santo.
Se estas notas comportassem o tratamento mais desenvolvido de pontos secundários, a camaradagem de Tristão e de Zarco com Bartolomeu seria tema para umas poucas de páginas.
[3] João Teixeira, residente no Machico, foi homem muito conhecido pelas suas proezas de cavaleiro e de grande caçador.
Fez uma coutada no Caniçal, enriquecendo-a com varias espécies de caça desde a javali a perdiz, e as quais em poucos anos se reproduziram de modo a rivalizá-la com as melhores coutadas do continente. Tanto que D. Manuel o soube, escreveu à câmara do Machico recomendando que conservasse zelosamente a coutada do Caniçal, pois que estava informado da sua importância e de que não havia outra igual nem semelhante onde as pessoas reais pudessem montear e caçar, no caso de algum dia irem à ilha.
A carta ficou registada nos livros da mesma câmara.
[4] Pedro Correia da Cunha era filho de Gonçalo Correia, fidalgo abastado no tempo de D. João I e ao qual este monarca, por carta de 22 de Dezembro de 1411, deu em troca da terra de Valadares a da Cunha-a-Velha, donde o filho e os seus descendentes tomaram o apelido de Cunha.

sábado, 12 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (3)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 21-38.


Texto integral




II

CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DOS ESTRANGEIROS EM PORTUGAL.
O PRIMEIRO ASCENDENTE CONHECIDO DOS PERESTRELOS.
NOTÍCIA HISTÓRICO-GENEALÓGICA DESTA FAMÍLIA NO NOSSO PAÍS.
BARTOLOMEU PERESTRELO.
SOGRO DE CRISTÓVÃO COLOMBO; AS SUAS TRADIÇÕES DE NAVEGADOR E DESCOBRIDOR DA ILHA DO PORTO SANTO.



A história da imigração estrangeira na península há dois movimentos de certa forma característicos: um, vindo de França e transpondo os Pirinéus, predominou durante a laboriosa gestação dos modernos estados ibéricos, o outro, com o foco em Itália e transmitido pelo Mediterrâneo, acompanhou-os na sua idade viril, bracejando pelos mares e desdobrando a sua área territorial até às regiões mais afastadas do globo.
A França tem larga representação na história peninsular por uma das camaradagens mais valiosas na guerra contra o domínio mauritano, como a Itália nas grandes explorações transatlânticas dos séculos XV e XVI. Nas lutas, de que nasceu, Portugal abriu à primeira um campo de triunfos e o caminho dos melhores interesses individuas; arvorado depois em primeiro empório marítimo e comercial da Europa, ofereceu à segunda um novo atractivo, que lhe permitiu retomar parte das suas velhas tradições de rainha do oceano e também franquiar um campo de produtiva actividade as suas mais variadas ambi­ções pessoais.
Especificamos a França e a Itália nestes dois movimentos imigratórios, por terem neles figurado respectivamente em primeiro lugar; porque as suas re­lações revestiram uma forma quase sempre amigável e por vezes sincera, o que é para admirar em épocas de lutas menos escrupulosas pela glória e pela fortuna; e porque, finalmente, além da sua acentuada influência moral, o seu sangue cruzou-se com o nosso, encontran­do-se ainda hoje vestígios límpidos por quase todo o País.
Aquém dos Pirinéus, apesar da divisória política e de diversas embrulhadas dinásticas, foi sempre tão constante a permuta de gente, e é tão conhecido o au­xílio recíproco, em diferentes colisões, entre o povo espanhol e o português, que realmente não podemos considerar, para o caso sujeito, a Espanha como uma nação estrangeira.
Notando a rara sinceridade das nossas relações internacionais, colectiva ou individualmente considera­das, deixámos subentendidas excepções numerosíssimas, de cuja particularização nos guardamos o mais possível, embora nos fosse coisa fácil de fazer.
Desde a sua primitiva, Portugal não foi a maior parte das vezes correspondido na confiança generosa e fraternal, com que abriu os seus braços aos estrangeiros, sem nunca lhes exigir passaporte, ou cartas de crença.
Hospedou-os sempre com carinho, proporcionou-lhes as mais invejáveis alianças matrimoniais, forne­ceu-lhes a matéria-prima do trabalho, abriu-lhes a porta das grandes fortunas e nobilitou-os, por fim, como fecho da sua rasgada hospitalidade.
Entre os que lutavam fraternalmente ao nosso lado, em terra e no mar, e os que exploravam tão-somente as fontes de riqueza do país em diversos ramos de negócio, desde os senhorios e comendas aos casamentos nas grandes casas, nunca se estabeleceram diferenças odiosas. O herói e o homem de negócio fo­ram sempre bem vindos; desbravavam-se-lhes indistintamente o caminho das suas aspirações, sem inquirir da sua procedência, nem perscrutar-lhes os intuitos.
Diziam que eram nobres da mais fina extracção? Lavrava-se-lhes logo, sem maior processo de habilitação, um instrumento oficial, espécie de salvo-conduto ou de talismã, que lhes franquiava os solares, onde ha­via grandes dotes, e os guindava ao úbere inesgotável da Amaltéa pública.
Não eram nobres, nem tinham quem os afiançasse como tal? A munificência régia lá descobria um serviço, ou invocava genericamente serviços para diplomá-los com pergaminhos e emparveça-los num brasão de armas.
Muitos vinham pera estes reynos cobertos de oução (lêndeas) e se iam ao despois todos agalanados e muy paraltas; como lemos algures.
Que se fossem só agalanados e paraltas; bom proveito. Felizes daqueles a que a fortuna sorriu na terra alheia, sua pátria adoptiva; mas o pior é que essa pátria adoptiva, tema das mais requintadas declamações, recebeu não poucas vezes a ingratidão e o descrédito, como paga da sua confiança e hospitalidade.
A índole, ou feitio, em extremo dócil, sociável e confiante, acarreta aos povos as mesmas consequências funestas, que aos indivíduos. O homem, que abre de par em par a sua porta a um desconhecido e o admite na familiaridade do seu lar, não difere duma nação, que deixa entrar no seu mecanismo orgânico um ele­mento estranho, sem afinidade de sentimentos, nem comunidade de interesses.
Em tal casa há apenas um jogo de azar; as pro­babilidades de ganho são inferiores às de perda, tanto, quanto é diminuta a percentagem dos exemplares aproveitados na aclimatação de seres exóticos.
Portugal experimenta há muitos séculos, e conti­nua a experimentar, os resultados demonstrativos desta profunda verdade. Recebeu muitos serviços de estran­geiros, e pode orgulhar-se de lhos ter pago por seu justo valor; salvando-se, esta clara, as excepções que haveria pela força das circunstâncias, das quais come­çou por ser vitima um grande número dos nossos mais eminentes concidadãos. Poucos, porém, agradeceram a este país hospitaleiro os serviços e acolhimento que lhes prestou; e, se dele se lembraram depois, foi só para a depreciação e para o descrédito.
Se estudarmos a fundo as nossas diversas crises morais e económicas, bem como algumas complicações internacionais que nos custaram caríssimas, não as po­demos carregar em exclusivo à conta do elemento propriamente nacional; algumas há até, onde este figura simplesmente pela sua tolerância, umas vezes passiva. Outras vezes inconsciente.
Se, por outro lado, procurarmos as vítimas dessas derrocadas, encontraremos apenas o país com aqueles que lhe estavam indissoluvelmente presos por uma choupana, por uma jeira de terra, por um pedaço da sua alma.
Estas considerações escaparam-nos instintivamente ao dobrar a papelada e ao fechar os alfarrábios, por onde andámos a procura dos Perestrelos. Não foram eles que no-las inspiraram: pelo contrário, avultam como excepções honrosas, que se consubstanciaram no sangue português. Foi todo esse caleidoscópio assombroso, que nos suspendeu frequentemente a investigação, mergu­lhando-nos numa meditação profunda.
Para reunirmos uma família tresmalhada, como a dos Perestrelos, tropeçámos com muitos outros mortos e estacámos diante de verdadeiras surpresas. Aqui, tolices que nos fazem rir; ali, torpezas que nos revoltam; acolá, desgraças que nos provocam lágrimas; mais além, rasgos de valor e de civismo, que nos arrancam bênçãos.
Os Perestrelos, como toda a gente, pagaram o seu tributo de fragilidade humana; mas tão pequeno em relação aos méritos pessoais e brilhantes serviços de alguns deles, que mal se torna reparável.
O que se tem escrito até hoje a seu respeito vai, todavia, ser modificado, porque assim o exige a histó­ria, sem lhes prejudicar no conjunto as suas belas tradições de família.

*
* *



Filippone, ou Filippe Palestrello é o primeiro ascen­dente dos Perestrelos, que encontramos em Portugal, por fins do século XIV, entre outros muitos compatrio­tas seus, que vieram a este reino em busca de fortuna.
Filippone era filho de misser Gabriele Palestrello, natural da cidade de Placência (Lombardia) e de sua mulher madame Bartholine Biforti ([1]), que faleceram na mesma terra da sua residência e naturalidade. Tudo isto se depreende duma justificação, que ele apresentou para se eximir a uma derrama tributaria lançada por D. João I para custear a expedição naval a Ceuta.

(Placência - Palácio Medieval)

Além da sua filiação, provou Filippone Palestrello por algumas testemunhas suas conterrâneas serem os seus ascendentes em Itália fidalgos da cota de armas e de reconhecida nobreza, facto que o isentava do paga­mento do mencionado tributo.
Este processo justificativo, apenso ao respectivo alvará, tem a data de 8 de Janeiro de 1399, e ambas as peças constituem o primeiro e mais seguro vestígio cronológico, até agora encontrado, da existência de Fi­lippone em Portugal. ([2])
Achava-se ele então na cidade do Porto, mas em 1415 encontramo-lo com residência em Lisboa e já ca­sado com uma senhora portuguesa, D. Catarina de Melo, de quem teve os quatro filhos seguintes, por ordem do nascimento: Richarte ([3]), D. Isabel, D. Branca e Bartolomeu.
Antes, porém, de entrarmos no estudo biográfico do último, faremos algumas referências a seu irmão mais velho e à progénie distinta; de que foi tronco, bem como daremos notícia circunstanciada de suas irmãs, cujos destinos, além de oferecerem uma certa no­vidade histórica, proporcionaram a Richarte e a Bartolomeu uma das relações pessoais mais valiosas da época.
Richarte Palestrello seguiu a carreira eclesiástica, obtendo o lugar de prior da freguesia de Santa Mari­nha de Lisboa, então a mais rendosa talvez do arcebis­pado. Houve em Beatriz Anes dois filhos — João Lo­pes Perestrello e Sebastião Perestrello ([4]) — legitimados por carta datada de Sintra a 11 de Julho de 1423.
Do filho mais novo não alcançámos informações de maior interesse e fidelidade. O mais velho e herdeiro da casa de seu pai, João Lopes Perestrelo, já acreditado por um largo tirocínio nas lutas do mar, teve a capita­nia da Fradeza, uma das naus da expedição às Índias em 1502, comandada por Vasco da Gama, e distin­guiu-se por essa ocasião nas lutas com o gentio de Cochim. Voltando da Índia com um avultado pecúlio, João Lopes instituiu no termo de Alenquer um grande morgado, que denominou — do Espanhol.


(Vasco da Gama)

Dois dos seus cinco filhos, Rafael e Bartolomeu ([5]) serviram na Índia com grande distinção. De Malaca partiu Rafael Perestrelo para o reconhecimento das costas da China, onde lutou com vários revezes, entre eles um cativeiro de 30 dias, o que não obstou a que também ali fizesse grande fortuna. O nome ilustre, que adquiriu, valeu-lhe ser novamente escolhido para comandar uma das naus da armada de 1519, sob as or­dens de Jorge de Albuquerque.
Omitimos muitos outros membros da família de Richarte Palestrello, e os quais mereciam menção hon­rosa, para não avolumarmos estas notas, com desvio do nosso caminho directo. Os filhos de João Lopes, mercê da fortuna de seu pai, parece que ficaram todos nas melhores condições económicas; pois que entre ou­tros documentos, que examinámos no Corpo Cronológico da Torre do Tombo, relativos a eles neste ponto, deparou-se-nos uma provisão real, datada de 21 de Agosto de 1514 para se pagar a sua filha D. Mécia Lopes Perestrelo a importância de 310$760 réis, que se lhe de­viam por empréstimo.
As duas irmãs de Bartolomeu Perestrelo, D. Isabel e D. Branca, viveram sucessivamente com o céle­bre arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Noronha, perso­nagem notabilíssima pela opulência com que viveu e pelo seu elevado nascimento, pois que lhe circulava nas veias sangue de Henrique IV de Castela e de D. Fer­nando I de Portugal. ([6])
Estas relações, que podem atrair os reparos da nossa época, um tanto exagerada nos seus preconceitos sociais e numa aparente intransigência para com as infracções das leis civis e canónicas, naquele tempo eram viáveis à face da tolerância consuetudinária e dos exemplos promanados do seio das mais elevadas hierar­quias. ([7]) Escusamos de aduzir provas individuais onde apoiar o que adiantamos. Basta atender à descendência bastarda da alta nobreza e dos reis, sancionada pelo acolhimento, que se lhe fazia no próprio lar conjugal, pela sua representação desassombrada nos negócios públicos, e, finalmente, pela legitimação que co-honestava os actos, relevando as culpas dos progenitores e remo­vendo as máculas suspensas sobre a cabeça da progé­nie. A brilhante dinastia, que por aquele tempo presi­dia aos destinos do país, começara por um bastardo, um dos maiores reis, que empunharam o ceptro português.
D. Branca Dias Perestrelo e sua irmã D. Isabel, a quem por morte desta ela sucedera nas relações amo­rosas com o arcebispo, se não gozaram dos foros legais da esposa, pelo carácter sacerdotal do homem, a quem se prenderam nos impulsos irrefreáveis do coração, ti­veram todavia, a par da grande consideração social, as comodidades e honras duma casa verdadeiramente fidalga, e os frutos dessas uniões foram perfilhados perpetuando-se numa descendência pouco vulgar a to­dos os respeitos.
Parece que D. Isabel pouco tempo sobreviveu ao nascimento de seu filho D. João, alcaide-mor da vila de Óbidos, legitimado por carta de 13 de Agosto de 1444. Falecida esta senhora, na companhia da qual vivia a irmã D. Branca, cuja formosura, segundo o que lemos, não em inferior a de D. Isabel, a amizade fraternal, que o arcebispo lhe dedicava, transformou-se logo noutra ordem de afectos, visto o temperamento bem conhecido de D. Pedro de Noronha e a necessidade de substituir a sua defunta companheira, com a possível conciliação da estética e da conveniência administrativa.
Desta ultima união conhecem-se três filhos, também legitimados em 13 de Agosto, de 1444 ([8]) Foram os seguintes: D. Isabel, a quem nos vamos já referir; D. Diogo de Noronha, frade de S. Francisco e depois bispo de Lamego; D. Pedro de Noronha, um dos he­róis de Alcácer-Ceguer e comendador-mor da ordem de Santiago que foi encarregado por D. João II de diver­sas comissões de confiança, que sempre desempenhou com muito critério e proficiência. Teve a honra de re­presentar por procuração o príncipe D. Afonso no seu casamento com D. Isabel, filha dos Reis Católicos; e es­colhido por delegado de Portugal nas cerimónias da ele­vação de Inocêncio VIII ao pontificado, resolveu por essa ocasião varias questões que trazíamos pendentes da Sé Apostólica, devendo especializar-se a bula da cruzada para prosseguirmos nas guerras de Africa.
D. Pedro de Noronha, como lhe permitiam as suas rendas e alta influência na Côrte, encaminhou com ma­nifesta solicitude até invejáveis proeminências eclesiásticas e civis os filhos havidos das duas irmãs Perestrelo, que, sempre que precisaram, dispuseram do valioso patrocínio do afamado prelado.
Chegou, porém, um momento em que o prestígio deste começou a declinar rapidamente, e uma profun­da reviravolta se operou no seu regime doméstico. D. Branca Dias Perestrelo, em vésperas de ser mãe, foi de súbito enclausurada num mosteiro de Coimbra, por or­dem despótica do arcebispo, e ali deu a luz D. Isabel que em 1462 casou com o marquês de Montemor, filho do segundo duque de Bragança e um dos caudilhos da nobreza sublevada contra a política absorvente e centralizadora do Príncipe Perfeito.
D. Pedro de Noronha, que até então não posterga­ra de todo uns restos do decoro devido à sua pessoa e dignidade arquipiscopal, precipitou-se depois numa vida desregrada com outras mulheres, de que houve mais filhos, e D. Branca despeitada pelo seu abandono e vendo­-se preterida não tardou em sair do convento para ca­sar com Aires Anes de Beja, morador em Coimbra. Deste casamento houve larga descendência, conhecida pelos Perestrelos de Beja. ([9])

*
* *



Bartolomeu Perestrelo, o mais novo dos quatro filhos de Filippone, por morte de seu pai ficou a cui­dado de seus irmãos, e ainda de tenra idade obteve colocação na casa do infante D. João, estreitamente re­lacionada com a de seu irmão D. Henrique nas cam­panhas de África e no auspicioso início dos nossos descobrimentos marítimos. Depois foi cavaleiro da mesma casa.
A natureza dos serviços mais ou menos públicos, por ele prestados numa época de trabalhos tão variados e complexos, não é fácil, porém, de precisar por enquanto. Da mesma forma que os cronistas do tem­po passaram rapidamente por diversas personagens, cujos nomes nos transmitiram pelo simples motivo de relações com outros mais salientes, ou com um facto histórico, não consagraram a Bartolomeu Perestrelo, senão referências vagas, como povoador e donatário da ilha de Porto Santo.
Nestas duas mercês, principais vestígios da pas­sagem de Bartolomeu pela história, e que lhe foram feitas pelo infante D Henrique, admitiram-lhe alguns escritores implicitamente a dupla qualidade de homem de mar e de descobridor, a despeito da palavra séria de Azurara e de Barros.
Não duvidamos de que ele houvesse bem mere­cido da generosa amizade e confiança de D. Henrique pelos seus méritos pessoais e por alguns dos vários serviços, que tanto distinguiram outros homens do seu tempo sem ser nas lides do mar; não nos encostamos tão-pouco confiada e exclusivamente à crítica, que atribui à influência de D. Pedro de Noronha as graças que lhe foram dispensadas. O que, porém, não pode­mos em consciência concluir, pela que se lê em di­versos escritos, pelo teor dos documentos relativos a Bartolomeu, e ainda por palpáveis contradições cronológicas, é que Bartolomeu Perestrelo fosse desco­bridor da ilha de Porto Santo, ou colaborador impor­tante de Gonçalves Zarco e de Tristão Vaz nesse empreendimento marítimo.
Para o reconhecer como tal, invocam alguns escritores, avultando entre eles D. Francisco de S. Luís, a prática geral daqueles tempos, isto é, serem dadas as capitanias das terras descobertas aos que tinham a prioridade do descobrimento. Assim aconteceu muitas vezes, mas não com a generalidade que possa formar uma regra para abranger Bartolomeu Perestrelo.
Jácome de Bruges, primeiro povoador e donatário da ilha Terceira, e igualmente Joz de Utra da ilha do Faial, não tomaram a mínima parte no descobrimento das duas ilhas. E além destes outros exemplos, mais levam-nos a pôr de parte a ideia de uma prática geral, na concessão das capitanias. Lembraremos, contudo, ainda outro caso sintético que imprime um novo carácter à questão das doações.
É a que D. Afonso V fez a Fernão Teles da ilha das Flores, cuja jurisdição e senhorio se consideram geralmente dados em primeiro lugar a D. Maria de Vi­lhena, o que é um absurdo; ou, apesar das prescrições da lei mental então vigente, por ela obtidos de Gomes Dias Rodovalho, quando a referida D. Maria era mulher de Fernão Teles e por morte deste ficou administrando as Flores, como tutora de seu filho me­nor Rui Teles. ([10])
Os descobridores da ilha foram Diogo de Teive e seu filho João de Teive, e foi este último que transaccio­nou com Fernão Teles a trespasse de todos os seus direitos segundo uma carta régia de confirmação, da­tada de 28 de Janeiro de 1475. Que nos conste Fernão Teles nunca ali esteve depois de ser donatário, quanto mais andar às apalpadelas por aquela região capri­chosa do Atlântico em procura da formosa ilha.
Por outro lado, a carta de doação de Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo, bem como a de confirmação da venda, que sua viúva e um irmão desta Diogo Gil Moniz, tutores de seu filho menor Bartolomeu fizeram a Pedro Correia da Cunha, não aludem a quaisquer serviços que hajam imperado para tal mercê, e menos ainda a primazia de Bartolomeu, como descobridor. Pelo contrário, no segundo desses documentos até se diz: que ele me pediu por mercê, que porquanto seu desejo e vontade era povoar a minha ilha de Porto Santo, o que realmente não se compadece nem ainda com qualquer pressuposição de direitos imediatos, que ele tivesse à referida capitania.
Quanto a companheiro de Zarco e de Tristão no descobrimento, e principalmente a havê-los precedido na empresa, além das considerações anteriores, que nos parecem conclusivas, opõe-se a cronologia a verosi­milhança deste traço histórico de Bartolomeu Perestrelo. Tristão Vaz era já homem feito em 1418, época em que se fixa o encontro da primeira ilha do arquipélago da Madeira. Tinha ele então de 33 para 34 anos, e Zarco andava pela mesma idade, ou por mais avançada ainda, a concluir do que diz João de Barros com respeito aos herdeiros de Zarco disputarem as gló­rias de Tristão por este não ser homem de tanta idade e qualidade como João Gonçalves. Se uma diferença de idade, que não podia ser grande, constituía base para esse pleito moral entre os representantes dos dois he­róis, que faria se se pusessem dum lado os de Bartolomeu a litigar com os de ambos eles reunidos do outro.
Pois que, por diversos cálculos e, sobre tudo, pela época de que se pode aproximar o casamento de Filip­pone, segundo os nobiliários, notando que Bartolomeu foi o quarto fruto desse matrimónio, ele não te­ria mais de metade dessa idade, acrescendo ainda a circunstância considerável de D. Isabel Moniz, terceira mulher de Bartolomeu Perestrelo ser bisneta materna de Tristão Vaz.
Bartolomeu Perestrelo estava, portanto, numa idade pouco própria a atribuir-se-lhe, na falta absoluta de dados históricos que provem o seu talento precocíssimo para a vida do mar, o comando de qualquer expedição ou a sua escolha para representar nela um papel igual ao de Zarco e de Tristão, já celebres nas lides de África, e com o seu nome de marinheiros feito nas travessias de Portugal a Ceuta e a outros pontos nas costas norte e oeste do continente negro. Foi, sim, em companhia dos dois, na corrente entusiástica e sonhadora dos que se ofereceram para ir povoar Porto Santo, um novo paraíso pela mais jocosa das antifra­ses.
Em conclusão, a fama arranjada a Bartolomeu Perestrelo, como navegador não se estriba sequer em considerações de maior procedência. Que ele se tivesse distinguido em qualquer outro ramo de actividade da época, não está fora de razão e de justiça admiti-lo em face da mercê, que lhe fez o infante, e do bom acolhimento que lhe dispensaram famílias, ciosas do seu sangue e pergaminhos, com as quais ele contraiu alianças matrimoniais.
Liquidado, pois, este ponto de velho debate histórico, entremos noutras mais intimamente relacionados com a existência do capitão donatário da ilha de Porto Santo.



[1] Bartholomine Biforti, segundo outros. O apelido Biforti aparece pelo decurso do tempo, e na mesma família dos Perestrelos, escrito de diferentes modos: Biforte e Bisforti; e até uma terceira neta de Gabriel e de Bartholine se apelidou Brachiforti. Foi esta D. Leonor Perestrelo Brachiforti, filha de João Lopes Perestrelo e casada com Gil Vicente da Maia, falecido em 16 de Janeiro de 1451. Ambos jazem no cruzeiro dos Capuchos da Car­nota e no epitáfio ainda se lê claramente assim escrito o nome daquela senhora.
[2] Jacinto de Pina Loureiro, talvez o genealogista mais consciencioso e minucioso e que fundamenta quase sempre a sua extensa obra em provas irrefutáveis e documentos arquivados na Torre do Tombo, diz-nos que o documento acima existia ainda no começo do século XVII em mão de D. Leonor Lobo Perestrel­o, que era então casada com Diogo Saldanha, sendo por esse meio que se veio a saber quais eram os seus ascendentes e as armas que esta família usara em Itália.
As armas dos Perestrelos são: Escudo partido em pala; na primeira, em campo de oiro, um leão de púrpura armado de ver­melho; na segunda, em campo de prata, com banda azul, carrega­da de três estrelas de oito pontas entre seis rosas de vermelho de três em três em pala. Timbre o leão do escudo Com uma estrela na espádua.
[3] Seguimos exactamente o nome que lhe dá a carta de legitimação dos filhos, desprezando as variantes ortográficas, que se encontram nos genealogistas.
[4] Acompanhamos as modificações sucessivas que o apelido sofreu em Portugal, segundo o texto de diferentes escritores.
[5] Este Bartolomeu Perestrelo teve em galardão de seus serviços a provedoria da Fazenda Real de Malaca, sendo capitão-­mor Jorge de Albuquerque, ou, como quiserem, Jorge de Mello Pereira de Albuquerque.
[6] Tanto D. Pedro de Noronha, como seus irmãos, foram personagens importantes. D. Fernando, segundo conde de Vila Real, D. Sancho de Noronha, conde de Odemira e D. Constança de Noronha, 2.ª mulher de D. Afonso, primeiro duque de Bragan­ça, constituíram com seu irmão, o 3.º arcebispo de Lisboa, um núcleo de força social de primeira ordem.
[7] A mancebia não era coisa corrente, tolerada pelas leis e pelos usos, só na época a que nos referimos, e exclusiva do nosso país. Não incorreremos, porém, na indelicadeza desnecessária de entrar na casa alheia. De muitas provas, que temos, do que a tal respeito se passava entre nós desde os primeiros tempos da monarquia e das tristes condições sociais da mulher nos séculos passados, apenas indicámos ao leitor um documento, que se encon­tra no Livro 4.° de Além-Douro, a folhas 274. É a transacção efectuada entre D. Diniz e Branca Lourença. O rei dava-lhe a vila de Mirandela, motivando essa mercê da seguinte forma: E esta vos faço por compra do vosso corpo, e se Deus tiver por bem que eu haja de vos filho ou filhos, que a elles fique a dita villa.
Caso verdadeiramente assombroso para a época de hoje; mas o dr. Francisco Brandão, que aproveitou o documento na sua Monarchia Lusitana, diz-nos que essas coisas não eram estranhadas naquele tempo. E tanto o não eram, que D. Afonso, filho de D. Dinis, assina com seu pai aquele curiosíssimo papel! O mesmo cronista pondera, que a rainha Santa Isabel não o assinou, pelo decoro que se lhe devia guardar, visto que a mercê era feita a uma mulher, com quem o rei ofendia sua esposa. E faltava apenas para cúmulo que esta assinasse a transacção, em que figuram como testemunhas nada menos do que sete bispos, um mordomo-mor e um chanceler!
A compra do corpo de Branca Lourença estava perfeitamente válida com a assinatura de tantos maiorais da igreja romana e mais do que garantida pela rubrica dum infante em vésperas de ser rei.
De passagem: D. Diniz foi o fundador do convento de Odivelas, e com tanta solicitude velava pela recato das freiras, que nem estas podiam tomar banhos do mar senão sob a sua real pre­sença.
[8] O facto dos eclesiásticos legitimarem filhos era antigamen­te vulgaríssimo. Para que disso se faça uma ideia apontamos al­guns de muitos exemplos: Os bispos da Guarda, D. Gonçalo, D. João e D. Álvaro, legitimaram um grande número deles; alguns, ho­mens insignes. O bispo de Évora, D. Afonso, primo del-rei D. Manuel, reconheceu por seu filho a D. Francisco de Portugal, em 1515; o bispo do Porto D. João de Azevedo, a D. Manuel da Silva, em 1516 além de outros; e o de Viseu, D. João de Abreu a Diogo Gomes de Abreu em 1508.
Os seculares que houveram filhos de freiras, legitimando-os depois, também foram em quantidade considerável; e a própria circunstância das mães estarem no convento ao tempo da concepção e do parto, não obstava a legitimação. Como exemplos, apenas dois: o de D. António, filho de Rui de Sá e de Catarina de Lemos, freira da ordem de S. Bernardo, e o de Gonçalo de Barros, filho dum fidalgo do mesmo nome e de Isabel Dias, também freira professa.
Os próprios bastardos, havidos nas condições mais ofensivas de moralidade conjugal, gozaram sem estorvos do benefício de legitimação. João de Noronha, casado com D. Isabel de Sousa legitimou por filho em 1510 a Diogo de Noronha, nascido de uma escrava por nome Catarina, ao serviço doméstico de sua mu­lher. E como ele muitos outros, em casos idênticos, e as vezes ainda coloridos de circunstâncias mais aviltantes.
[9] Chegaram a tal ponto os actos imorais de D. Pedro de Noronha, que o povo o perseguia e injuriava pelas ruas, sendo-lhe tirado o governo do arcebispado e fugindo ele em seguida para Castela, donde regressou com certeza antes de Agosto de 1444, a concluir pelos actos da legitimação de seus filhos.
A época da saída pode determinar-se em 1439 por um docu­mento desse ano, que encontramos nos Elementos para a História do Município de Lisboa, do nosso distinto amigo Freire de Oliveira, um dos mais valiosos trabalhos de investigação moderna, a que a restrição do título encolhe aparentemente o valor de verdadeiro subsídio para a história geral do país. Esse documento é um alvará em que se ordena «que metade das rendas do arce­bispado de Lisboa fosse aplicada no pagamento das dívidas, que o arcebispo D. Pedro deixara e a outra metade nas coisas pertencentes ao mesmo arcebispo» — 8 de Dezembro de 1439.
Não deixam de ser curiosos os seguintes traços biográficos que nos dá Pina Loureiro:
D. Pedro de Noronha filho do l.º conde D. Afonso Henriques de Castela e de sua mulher a sr.ª D. Isabel. Vendo-se privado de seus estados pelas inquietações de seu pai, se fez eclesiástico e foi o 3.º arcebispo de Lisboa e prelado de grande autoridade e respeito, e assim por morte del-rei D. Duarte foi um dos adjuntos ao governo do infante D. Pedro; porém, seguiu nas dissenções, que teve a rainha D. Leonor com o dito infante, o parti­do da rainha, instigado por seu cunhado o duque de Bragança; cometeu depois acções indecentes a sua dignidade, e assim o senado de Lisboa lhe suspendeu as rendas e dignidades, e, vendo que em muitas terras se lhe perdia o respeito, se retirou a Castela donde depois voltou a este reino e retomou a inimizade an­tiga do infante de cuja morte e desgraça foi ele grande parte.
«Está sepultado na sua sé de Lisboa na capela do Sacramento e tem em sua sepultura o letreiro seguinte: Aqui jaz o Reverendíssimo em Cristo padre o Sr. D. Pedro Arcebispo desta cidade, neto do nobre rei D. Fernando de Portugal e neto de el-rei D. Henrique de Castela, cuja alma Deus haja; o qual se finou em 12 de Agosto de 1452.»
[10] D. Maria de Vilhena, à semelhança do que fez D. Isabel Moniz com a ilha do Porto Santo, também vendeu a ilha das Flo­res a João da Fonseca, com a diferença, porém, de que o acto de D. Maria foi reconhecido pelo filho como válido, enquanto que Bartolomeu Perestrelo n.º 2 propôs e conseguiu a anulação da venda feita por sua mãe a Pedro Correia da Cunha.

terça-feira, 8 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (2)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 11-20.


Texto integral


A MULHER DE COLOMBO

I

A FAMÍLIA MONIZ. – SEU TRONCO, GLORIOSO PAPEL HISTÓRICO
E DEDUÇÃO GENEALÓGICA
ATÉ D. ISABEL MONIZ, 3.ª MULHER DE BARTOLOMEU PERESTRELO
E SOGRA DE CRISTÓVÃO COLOMBO


APELIDO Moniz, durante os primeiros anos do seu aparecimento em Portugal, figurou apenas na sua legítima derivação patronímica do valente D. Muninho Viegas, cognominado O Gasco, por ser oriundo da Gasconha. D. Muninho passou a Portugal em tempo de D. Ramiro III, rei de Leão, acompanhado de dois filhos, que não deixaram nome menos glorioso do que seu pai na denodada conquista das terras de Riba-Douro. ([1])
Com os Monizes coincide a nacionalização dos Guédon, também apelido francês, ([2]) em Guedes, porque D. Muninho era casado com D. Valida Trocosendes, filha de Trocosendo Guedas, apelido, em que já então degenerara Guédon, em virtude de diversas alianças, sendo D. Trocosendo a origem conhecida, onde vão entroncar-se os Guedes, de Portugal.
O sangue vigoroso d’O Gasco não se circunscreveu, porém, na sua propagação, aos pequenos limites territoriais do nosso país, então ainda embrionário numa parcela de Espanha.
Na vida baralhada dos povos da península, e que continuou sempre assim, mais ou menos caracteristicamente, apesar da raia política, delineada pelo conde D. Henrique, alargada e consolidada pelos seus sucessores, os Monizes, como muitos outros, espalharam-se até aos Pirinéus; e na permuta, através deles estabelecida pelo génio aventureiro da época, iríamos certamente, se necessário fosse, reencontrar na pátria de D. Muninho herdeiros consanguíneos das suas famosas tradições.
Tanto assim, que já no século XII se distinguia o apelido Moniz em Castela, com manifesta radicação genealógica; e o século seguinte fornece-nos, entre outros exemplos de quanto os Monizes sustentaram ali, como em Portugal, a herança moral do seu glorioso progenitor, os de D. Diogo Moniz, mestre da ordem de Santiago em 1306, e de D. Pedro Moniz ([3]) mestre da ordem de Calatrava e mais tarde da de Santiago, posto, em que morreu valorosamente a 5 de Outubro de 1385 na batalha de Valverde, travada entre o exercito castelhano, por ele comandado e pelo mestre de Alcântara, e o português, que tinha a sua frente o condestável D. Nuno Álvares Pereira.


Não é fácil, porém, reconstituir a sucessão rigorosa dos Monizes desde D. Muninho até fins do século XIV. Nos primeiros tempos da monarquia portuguesa, conservou-se ela sofrivelmente nítida, asseverando mesmo alguns escritores, que Mem Moniz, irmão de Egas Moniz, o Bem-Aventurado, usara já as armas da família desse apelido, que, embora admitido o facto, não perdeu de todo a sua feição patronímica. ([4])
Os Monizes, talvez um pouco apeados do seu antigo esplendor, desapareceram temporariamente absorvidos em diversas alianças com outras famílias – os Ataídes, os Alvarengas, os Coelhos, etc.; ([5]) e só na fulgurante alvorada do século XV, é que surgem os primeiros elos duma cadeia genealógica, que nunca mais se solveu, a despeito dos poderosos cruzamentos de sangue, em que entrou, pelo decorrer do tempo. ([6])
Aparecem-nos par essa época três irmãos do apelido Moniz: Vasco, Garcia e D. Leonor; o primeiro dos quais é o ponto de partida para a sucessão ininterrupta dos Monizes, a que pertence D. Isabel, mulher de Bartolomeu Perestrelo. Retomá-lo-emos na devida altura.


O segundo, que enumeramos, e o último na ordem do nascimento, Garcia Martim Moniz, foi sujeito de grande fidelidade e valor militar. Planeada a expedição a Ceuta, Garcia Moniz distinguiu-se por sua actividade enérgica nos preparativos da empresa, e acompanhou a África o infante D. Henrique, cujos primeiros anos ele guiara com austera solicitude, nunca o abandonando um momento, nem como guarda as irreflexões da sua adolescência, nem como companheiro devotado nos perigos da sua afanosa virilidade.
Muitas e sucessivas provas de dedicação, aureoladas do prestígio duma espada de primeira força, deram a Garcia Moniz, sobre o infante, um ascendente moral que bem se revelou com o seu famoso pulso no seguinte episódio da tomada de Ceuta: D. Henrique, acompanhado de alguns homens de armas, irrompera pelas portas da cidade, achando-se envolvido na refrega, que se levantara entre os mouros e os primeiros portugueses, que haviam entrado. Chegou um momento em que a luta esteve seriamente comprometida para a nossa gente; porque o infante, embrenhando-se pelas ruas de Ceuta, deu de frente com um tropel de inimigos, cujo número muito superior ao dos nossos, o ia esmagando. Até se espalhou da parte de fora dos muros a notícia de que D. Henrique caíra mortalmente ferido no combate.
Garcia Moniz, que estava ao lado de D. João I, apenas ouviu a triste nova, soltou um rugido de vingança, precipitou-se louco de dor e desespero por uma das portas atulhadas de cadáveres, abriu caminho à espada, como um dos arcanjos lendários dos combates, até encontrar o infante, que, longe de haver caído, disputava quase sozinho uns lampejos mortiços de vitória. Desenvencilhou-o dos mouros, que o cingiam num círculo cada vez mais estreito, advertiu-o severamente daquela temeridade, conseguindo arrancá-lo ao perigo, que o embriagava e tornara surdo a todos os conselhos dos seus outros companheiros. Este acto heróico valeu a Garcia Moniz a amizade de D. João I e a admiração de quantos o presenciaram.


Do valente português, contudo, nada mais se sabe do que os seus prodigiosos feitos de armas e estreitas relações com o infante D. Henrique; nem mesmo se foi casado, ou se deixou sucessão.
D. Leonor Moniz foi segunda mulher de Gil Aires, secretário ou escrivão da Puridade do condestável D. Nuno Álvares Pereira, e seu alferes-mor, conciliando nós as diversas opiniões a tal respeito. Gil Aires teve sepultura no mosteiro do Carmo, de Lisboa, na capela de Nossa Senhora da Piedade. ([7]) Deste casamento nasceram quatro filhos, que tiveram larga e distinta representação nas empresas militares e marítimas de Portugal no século XV.
Especializaremos apenas Vasco Gil Moniz, casado segunda vez com D. Leonor de Lusignan, a qual veio de Castela na qualidade de dama da infanta D. Isabel, mulher do infante D. Pedro, duque de Coimbra, e era filha de Febo Lusignan, que os linhagistas deduzem da família dos reis de Chipre. Deste ramo lateral dos Monizes é que proveio o grande patriota Febo Moniz, que em 1580 tanto sobressaiu por sua indignação e desassombrado levantamento contra a vil entrega do Reino nas mãos despóticas dos Filipes. ([8])
Finda esta digressão, que entendemos não dever dispensar, voltemos a Vasco Martim Moniz, no qual, como dissemos, se reata o fio genealógico de D. Muninho Viegas, e que nunca mais se perde até D. Isabel Moniz.
Vasco Moniz foi um fidalgo de grande nomeada no tempo de D. João I e exerceu o cargo de vedor da casa do infante D. Henrique. Como seu irmão Garcia, também assistiu à tomada de Ceuta, tendo largo quinhão nas glórias ali ganhas pelos portugueses. Casou com D. Beatriz Pereira, filha de Paio Pereira, fidalgo da casa real, e de D. Leonor Formosa, da qual houve quatro filhos, continuando-se a sucessão no primogénito, Henrique Moniz. ([9])
Henrique Moniz, alcaide-mor de Silves, casou duas vezes, sendo a segunda com D. Inês Pereira, filha de D. Diogo Álvares Pereira. ([10])
Desta aliança nasceram 5 filhos, e o segundo na ordem do nascimento, Vasco Martins Moniz passou à ilha da Madeira, que então já se tornara um centro de bastante actividade industrial e uma espécie de acampamento para a exploração das costas africanas e sondagem dos caminhos, que nos levariam às suspiradas regiões do oriente.
Vasco Moniz, pai de D. Isabel Moniz, mulher de Bartolomeu Perestrelo, não era um dos aventureiros vulgares, que naquela época vagueavam terra marique em busca de fortuna. Por intervenção de seu pai entrou muito novo ainda no serviço da casa real, de que teve o foro de moço fidalgo, e foi sempre muito estimado de D. Afonso V, ao lado do qual combateu nas guerras de África, tão assinaladas nesse tempo pelas conquistas de Alcácer-Ceguer, Tânger e Arzila, interessando-se até à última pela sorte do infeliz monarca.
Instalou-se na vila do Machico, onde se distinguiu de quantos portugueses e estrangeiros ali viviam, por sua generosidade, pela fidalguia do seu trato e pelo fastigio principesco da sua casa, cujas comodidades e atractivos não o enervaram; pelo contrário, sempre que o rei e o país lhe reclamaram os serviços, ele deixou a família para acudir com o seu braço e muitas vezes com a sua bolsa.
Vasco Martins Moniz impôs-se por muitos títulos a veneração dos vindouros; mas há, sobre tudo, um tão raro e sublime, do superior a todas as conquistas da espada e da bússola, que o não seguiremos minuciosamente, como aos seus antepassados, no campo da luta, para admirá-lo como homem no amor consagrado a sua mãe. Debaixo da armadura de guerreiro pulsava-lhe um coração delicado de criança, na sua mais indizível impressionabilidade filial.
Nas distracções absorventes dos combates e da vida solarenga no meio da numerosa família que constituíra, Vasco Moniz conservara sempre viva a abençoada lembrança da mulher, que lhe deu o ser, e da qual a tempestuosa agitação dos tempos o separara ainda em bem tenra idade. Poucas tréguas lhe haviam deixado os seus trabalhos para acompanhá-la nas lágrimas da viuvez e da ausência ansiosa dos filhos, que as vicissitudes do mundo lhe desgarrara para um e outro lado.
Nos últimos anos, e os mais sossegados da sua afadigada existência, Vasco Moniz vinha amiúde visitar sua mãe, D. Inês de Menezes, à vila do Torrão, onde ela vivia numa idade avançadíssima. Sentindo-se próximo a repousar de vez, reuniu ainda um resto de forças e de alento para atravessar o mar, deixou a vida ruidosa do Machico e veio refugiar-se no lar materno, falecendo aqui, com testamento fechado em 5 de Setembro de 1489, e no qual instituiu morgado da terça para seu filho primogénito.
Casou na ilha da Madeira três vezes. Do primeiro matrimónio não teve filhos, e do segundo houve três, que não destoaram por seu valor do sangue e tradições de seus antepassados. Foi sua terceira mulher D. Joana Teixeira, filha legitima do celebre Lançarote Teixeira, o Velho, ([11]) e de D. Beatriz de Góis e neta paterna do esforçado navegador Tristão Vaz, ([12]) materna de D. João do Rego e de D. Brites de Góis, da família do bem conhecido cronista português Damião de Góis.


O terceiro matrimónio de Vasco Martins Moniz foi fecundíssimo em filhos, alguns dos quais como, por exemplo, o bispo titular de Anel D. Cristóvão Moniz, sustentaram e ampliaram os pergaminhos desta antiquíssima família, com o mais levantado capricho cívico, inspirado nos deveres para com a pátria e na obrigação que nos impõe a lembrança de nossos maiores, como herdeiros do seu nome e dos seus haveres.
Também teve um bastardo com o nome de Vasco Moniz Barreto, que foi graduado em leis e letrado muito apreciado no seu tempo.
Um dos frutos do terceiro casamento foi uma filha – D. Isabel Moniz, terceira mulher de Bartolomeu Perestrelo, e da qual nos ocuparemos com mais particularidade, quando tratarmos de seu marido.


[1] Estes dois filhos chamavam-se Egas Moniz e Garcia Moniz, nomes mais tarde usados também por outros indivíduos desta família. Com D. Muninho, segundo afirmam o conde de Barcelos e outros, veio igualmente um seu irmão, D. Sesinando, que foi bispo do Porto. Dizem mais esses autores, que aquele Egas Moniz casado com D. Toda Hermigues Alboasar, descendente de D. Ramiro, é o avô de Egas Moniz, aio do nosso primeiro rei D. Afonso Henriques.
[2] Armorial Universel, por M. Gouffroy d’Eschavanes - Paris, 1844, vol. 1.º, pág. 205.
[3] A Pedro Moniz de Godoy chamam alguns escritores Pedro Nunes, por terem pela antiga preferência usual seguido o patronímico Nunes, tirado de Nuno Fernandes, pai do valente mestre de Santiago.
[4] Egas Moniz era também filho dum Muninho = Muninho Hermigues.
As armas dos Monizes são em campo azul, cinco estrelas de oiro postas em aspa, e por timbre um leopardo de azul com uma estrela das armas, na testa.
[5] Lê-se nos nobiliários mais autorizados, que dos descendentes conhecidos de D. Muninho Viegas, o Gasco, se passou aos Ataídes por Martinho Viegas de Ataíde, que se presume ser neto de Egas Moniz, e que, fora de toda a dúvida, é o sexto avô do 1.º conde de Atouguia.
[6] Todavia, entre outros vestígios históricos, que provam não haver sido completa uma tal absorção, apontaremos o seguinte: Frei Marcos da Silva, cronista de S. Francisco e diversos autores escrevem que no primeiro claustro do convento de S. Francisco de Lisboa, descendo pela escada que ia da portaria, à esquerda e pegado com o arco da capela, lia-se em latim a inscrição seguinte, que acomodamos a linguagem portuguesa:
À honra e louvor do sumo rei e da mui Bem-aventurada Virgem Madre e do Bem-aventurado Paraninfo Gabriel arc., João Moniz, clérigo e tesoureiro do ilustríssimo rei de Portugal, fez este claustro, capela e capítulo, e sua alma descansa em paz MCCCX.
Ou seja no ano 1272 do nascimento de Cristo.
[7] Esta capela foi fundada por Gil Aires; e, como ele não teve filhos da primeira mulher, passou em propriedade aos seus descendentes e de D. Leonor Moniz.
[8] Febo Moniz foi sepultado na capela fundada pelo seu ascendente Gil Aires. Actualmente são os condes de Sampaio os representantes directos do insigne português, por uma bisneta dele, D. Luísa Moniz de Torres e Lusignan, que herdou a casa do último Febo Moniz em linha recta.
[9] Um destes quatro filhos, por nome Vasco Moniz, casou com D. Aldonça Cabral e houve deste matrimónio D. Joana Pereira, mulher do 1.º vice-rei da Índia D. Francisco de Almeida. De Vasco Moniz descendem os marqueses de Angeja.
D. Beatriz ou Brites Pereira não era filha legítima, mas encontramos a sua legitimação no respectivo livro (3.°) a fl. 105.
[10] Diogo Álvares Pereira, primo do condestável, comendador-mor de Santiago e governador da casa do infante D. João filho del-Rei D. João I, foi casado com D. Mécia de Resende, dama da rainha D. Filipa e filha de Fernão Vasques de Resende. Deste casamento nasceram 2 filhas e 1 filho: 1.ª D. Isabel, mulher de D. Álvaro de Castro, alcaide-mor do Sabugal, conhecido pelo cognome de o do Torrão; 2.ª D. Inês, mulher de Gonçalo Nunes Barreto, alcaide-mor de Faro; 3.º Afonso Pereira, caçador-mor del-Rei, e que herdou em dote de sua 1.ª mulher a alcaidaria-mor de Santarém.
[11] Lançarote Teixeira, tronco duma numerosíssima e distinta família, era filho de Tristão Vaz, um dos heróis de Tânger e Ceuta, e companheiro de Zarco no descobrimento do arquipélago da Madeira.
Lançarote Teixeira foi uma reprodução típica admirável dos grandes cavaleiros medievais e gozava duma fama universal na arte de cavalaria. Altas personagens afluíam a Machico, vila da sua residência, para com ele aprenderem, e admirarem-no nos brilhantes torneios, que se faziam entre Machico e Santa Cruz, permitindo a avultada fortuna de Lançarote imprimir o maior fausto e lustre a estas festas varonis.
[12] Tristão Vaz, cavaleiro da casa do infante D. Henrique e donatário da jurisdição do Machico, foi homem célebre como guerreiro e navegador. Acompanhou o infante nas diversas jornadas de África, praticando actos de subido valor na tomada de Ceuta e no cerco de Tânger, onde foi armado cavaleiro pelo próprio D. Henrique. Voltando este as suas atenções e prodigiosa actividade para os empreendimentos, que desvendaram a Portugal os preciosos segredos do oceano, encontrou em Tristão Vaz um dos mais esforçados colaboradores da sua obra imortal.
Em 1418, indo em companhia de Gonçalves Zarco descobriu a ilha de Porto Santo, e no ano seguinte a da Madeira.
Uma das suas sete filhas, D. Ana Teixeira, deu causa a que Tristão Vaz cometesse um acto cruel, que lhe acarretou graves dissabores. D. Ana e um rapaz fidalgo, chamado Simão Barradas amavam-se com ardente afecto; mas o pai opôs-se terminantemente a essas relações, que continuaram às ocultas até que um dia, Tristão surpreendendo-os, fez desaparecer o Barradas, sem que se lhe soubesse o destino nem a causa do desaparecimento. Passados anos, descobriu-se que o amante de D. Ana fôra metido num subterrâneo, onde durante todo esse tempo esteve submetido à dura e degradante penitência de andar moendo em uma atafona. O caso foi participado a el-Rei, que mandou acto continuo a Tristão Vaz que comparecesse na côrte acompanhado de sua filha.
Vieram os dois. Sua alteza deu D. Ana em casamento a um fidalgo seu protegido, e ordenou que o pai fosse posto a ferros. Julgado pouco tempo depois, a sentença importou-lhe na perda da capitania e num degredo para a ilha do Príncipe. Expiada a culpa, voltou Tristão a Portugal; e a sua idade avançada bem como a recordação dos seus antigos serviços demoveram o rei a perdoar-lhe e a reentregá-lo na posse do Machico, que ainda governou por algum tempo, até que, indo em 1470 ao Algarve tratar de negócios da sua casa, morreu em Silves com 85 anos de idade, tendo nascido, por conseguinte, em 1385.

terça-feira, 1 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino


FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 5-10.



Texto Integral




REFLEXÕES PRELIMINARES


Há mais de um ano que procuramos definir a verdadeira posição de Cristóvão Colombo no meio do movimento marítimo do século XV e as suas relações com Portugal, onde casou e abriu caminho para as glórias, que o esperavam no Novo Mundo.
Este tema, hoje palpitante do maior interesse e oportunidade, seduziu-nos mais pelo desejo de formar um juízo seguro acerca dos debates sobre ele levantados, do que pela mira pretensiosa de vir um dia a decidir de qual dos lados contendores está a razão e a verdade.
Ainda, quando o fruto das nossas pesquisas e reflexões chegasse a ser tão completo, que justificasse uma tal presunção, faltava o convencer-nos de que ele lograria melhor sorte, que os estudos até hoje elaborados por penas de autoridade muito superior.
Alguns desses estudos, apreciáveis por sua larga crítica e investigação, embora não determinem o perfil rigoroso de Colombo, levam-nos, todavia, desde já a conclusões importantes, constituindo o alicerce indispensável a um futuro edifício, o norte consciencioso duma nova ordem de trabalhos interessantes e proveitosos.
Mas o que lhes aconteceu? O mesmo que a todas as tentativas de rectificação de um ponto ou determinando vulto da história de qualquer país; o mesmo que acontecerá, quando a investigação der por concluída a tarefa encetada acerca do famigerado genovês, rematando os seus esforços de hoje com as triunfais descobertas de amanhã, sem todavia lhe regatear o que tem de justo a sua fama de cosmógrafo e de navegador.
Na presente época, o verdadeiro historiador trabalha pela simples questão de consciência pessoal e de gosto artístico. Quer dizer, trabalha como toda a gente, cujos horizontes de actividade e de vistas morais não vão além das paredes de uma oficina, onde recebe a salário e passa umas horas de distracção íntima, ou de um gabinete de curioso, onde cria um mundo seu, povoado de alegrias e de visões de glória.
Mais nada. O alcance cívico da sua obra, a propriedade fecundante do seu espírito dizimado às parcelas, a justa avaliação da sua luta intelectual, em que para produzir duas linhas de verdade tem de folhear muitas vezes dezenas de páginas de mentira, revolver e joeirar contos e contos da tradicional lareira, tudo isso, que lhe constituiria a ambicionada palma da sua missão humanitária, é coisa vã que apenas se encontra em fórmulas amáveis e nas exterioridades convenientes, sob que a sociedade disfarça a sua indiferença por quem trabalha e a sua triste noção do bem e da justiça.
Para que o historiador se enganasse era necessário desconhecer o meio, em que vive e trabalha. E o conhecimento deste é-lhe tão indispensável, como o daquele que vai fazer reviver, se preferir pôr-se em contacto directo com o espírito popular a ocupar somente um lugar de honra nas bibliotecas dos sábios.
Assim, o trabalho de coleccionação e assimilação tão reconhecidamente improbo e difícil torna-se às vezes pouco diante da forma de apresentação, querendo-se conciliar a verdade com o sabor literário e as ideias da época.
Daqui a diferença na esfera de acção entre a obra do que se internou nos claustros e arquivos para viver na mais estreita identificação com o passado, ressurgido por ele numa admirável fidelidade de forma e palpitação de vida, e a do que não saiu do seu tempo para burilá-lo segundo o gosto, as crenças, e até o idealismo do meio social que o há-de ler.
O que escreveu, isolado do mundo, entre trincheiras de cantaria tumular, fez uma reprodução artística que poucos estão no caso de admirar e muitos menos ainda no de compreender; o que esboçou tão-somente a história sem perder de vista o revolutear caprichoso da sua época conseguiu sem dúvida alguma uma área de simpatias e de influência educativa incomparavelmente superior.
Porque o facto é este. Nenhuma, ou poucas fases moralmente doentias têm atravessado a nossa sociedade, como a dos últimos anos, devido ao excesso de desenvolvimento do sistema nervoso sobre o muscular. Até na morte voluntária se procura com aplauso geral o romance que não encontrámos na dura positividade da vida, senão filtrado através das páginas fantasiosas, que se converteram num artigo indispensável de passadio moral.
Nestas condições, a que resultado pode visar um trabalho de rectificação histórica, esfriado por documentos, traçado a esquadro, imposto com a voz austera e catedrática, que resulta da convicção da verdade e da indignação pela mentira?
Quando o espírito popular, pela sua morbidez crescente, se torna cada vez mais sequioso e insaciável de lendas e ficções, quem ousará com esperanças de vitória destruir-lhe, ainda por cima, parte do seu minguado repasto?
Aquele, que o pretenda, tem de contar ao certo com duas coisas: a suspeita ofensiva das intenções que o animaram e a necessidade de corroborar oficialmente até a mínima circunstância destrutiva da lenda, que se abraçou e parafraseou sem uma prova, um documento, um testemunho, sequer!
E, quando o consiga, a sociedade responder-lhe-á: «muito bem, parece que não mentiste; mas guarda para ti a verdade que ninguém te pediu, que eu prefiro a falsa tradição, que me legaram os bons velhos.»
Com efeito, temos visto quase sempre a lenda substituída pela lenda, no domínio da tradição registada nos escritos antigos e modernos: mas raras vezes a lenda substituída pela história, e nunca esta com a voga corrente e entusiástica da primeira.
Há páginas de conscienciosa reivindicação e de justiça póstuma, mas que representam apenas uma declaração de voto, com mero valor pessoal, cativo à cotação discricionária do optimismo ou do pessimismo.
As próprias correcções de efemérides, que pela mudança de um algarismo não alterariam a essência do facto, como acontece em diversos casos, raríssimas vezes têm conseguido vingar contra a intransigência apaixonada, com que se abraça por completo a transmissão oral ou escrita dos velhos fazedores de historietas.


*
* *


Ao trabalho que temos entre mãos não agouramos melhor sorte do que a dos publicados até hoje sobre o mesmo assunto. Por enquanto, pouco mais nos termos adiantado a eles, a não ser na confirmação de alguns pontos e nas demarcações dos nossos mares e colónias com os de Castela, no tempo de Cristóvão Colombo e no de seu filho D. Diogo.
Sacrificamos, porém, a ocasião momentosa, que se nos oferecia agora para publicar essas notas, a obrigação de não terminá-las precipitadamente, e vamos apenas destacar a parte, que se refere aos Monizes e Perestrelos, de cuja aliança proveio D. Filipa Moniz de Melo, mulher do ilustre navegador.
Anima-nos a isso um sentimento patriótico e o aproveitar o ensejo de nos associarmos às alegrias do povo espanhol de ambos os hemisférios, ao qual nos prendem, como irmãos, tantos laços étnicos e consanguíneos.
Se não podemos orgulhar-nos, como a Espanha, de nos haver associado a Cristóvão Colombo na sua cruzada ao novo mundo; Portugal, embora lhe ponham ainda dúvidas no seu glorioso desbravamento de todos os caminhos marítimos, acha-se intimamente ligado no melhor do seu sangue ao homem que vai ter, ao cabo de quatro séculos de largo registo histórico, a mais ruidosa e estimulante apoteose dos tempos modernos.
A festa em honra de Colombo, marido de D. Filipa Moniz de Melo, além de revestir um carácter verdadeiramente universal, deve também causar aos portugueses o santo e íntimo regozijo de uma festa de família.
Lisboa, Julho de 1892.


N. Florentino