sábado, 12 de maio de 2007

A Mulher de Colombo - Nicolau Florentino (3)

FLORENTINO, Nicolau; A Mulher de Colombo, Lisboa, Pap. e Tipografia Guedes, 1892, pp. 21-38.


Texto integral




II

CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DOS ESTRANGEIROS EM PORTUGAL.
O PRIMEIRO ASCENDENTE CONHECIDO DOS PERESTRELOS.
NOTÍCIA HISTÓRICO-GENEALÓGICA DESTA FAMÍLIA NO NOSSO PAÍS.
BARTOLOMEU PERESTRELO.
SOGRO DE CRISTÓVÃO COLOMBO; AS SUAS TRADIÇÕES DE NAVEGADOR E DESCOBRIDOR DA ILHA DO PORTO SANTO.



A história da imigração estrangeira na península há dois movimentos de certa forma característicos: um, vindo de França e transpondo os Pirinéus, predominou durante a laboriosa gestação dos modernos estados ibéricos, o outro, com o foco em Itália e transmitido pelo Mediterrâneo, acompanhou-os na sua idade viril, bracejando pelos mares e desdobrando a sua área territorial até às regiões mais afastadas do globo.
A França tem larga representação na história peninsular por uma das camaradagens mais valiosas na guerra contra o domínio mauritano, como a Itália nas grandes explorações transatlânticas dos séculos XV e XVI. Nas lutas, de que nasceu, Portugal abriu à primeira um campo de triunfos e o caminho dos melhores interesses individuas; arvorado depois em primeiro empório marítimo e comercial da Europa, ofereceu à segunda um novo atractivo, que lhe permitiu retomar parte das suas velhas tradições de rainha do oceano e também franquiar um campo de produtiva actividade as suas mais variadas ambi­ções pessoais.
Especificamos a França e a Itália nestes dois movimentos imigratórios, por terem neles figurado respectivamente em primeiro lugar; porque as suas re­lações revestiram uma forma quase sempre amigável e por vezes sincera, o que é para admirar em épocas de lutas menos escrupulosas pela glória e pela fortuna; e porque, finalmente, além da sua acentuada influência moral, o seu sangue cruzou-se com o nosso, encontran­do-se ainda hoje vestígios límpidos por quase todo o País.
Aquém dos Pirinéus, apesar da divisória política e de diversas embrulhadas dinásticas, foi sempre tão constante a permuta de gente, e é tão conhecido o au­xílio recíproco, em diferentes colisões, entre o povo espanhol e o português, que realmente não podemos considerar, para o caso sujeito, a Espanha como uma nação estrangeira.
Notando a rara sinceridade das nossas relações internacionais, colectiva ou individualmente considera­das, deixámos subentendidas excepções numerosíssimas, de cuja particularização nos guardamos o mais possível, embora nos fosse coisa fácil de fazer.
Desde a sua primitiva, Portugal não foi a maior parte das vezes correspondido na confiança generosa e fraternal, com que abriu os seus braços aos estrangeiros, sem nunca lhes exigir passaporte, ou cartas de crença.
Hospedou-os sempre com carinho, proporcionou-lhes as mais invejáveis alianças matrimoniais, forne­ceu-lhes a matéria-prima do trabalho, abriu-lhes a porta das grandes fortunas e nobilitou-os, por fim, como fecho da sua rasgada hospitalidade.
Entre os que lutavam fraternalmente ao nosso lado, em terra e no mar, e os que exploravam tão-somente as fontes de riqueza do país em diversos ramos de negócio, desde os senhorios e comendas aos casamentos nas grandes casas, nunca se estabeleceram diferenças odiosas. O herói e o homem de negócio fo­ram sempre bem vindos; desbravavam-se-lhes indistintamente o caminho das suas aspirações, sem inquirir da sua procedência, nem perscrutar-lhes os intuitos.
Diziam que eram nobres da mais fina extracção? Lavrava-se-lhes logo, sem maior processo de habilitação, um instrumento oficial, espécie de salvo-conduto ou de talismã, que lhes franquiava os solares, onde ha­via grandes dotes, e os guindava ao úbere inesgotável da Amaltéa pública.
Não eram nobres, nem tinham quem os afiançasse como tal? A munificência régia lá descobria um serviço, ou invocava genericamente serviços para diplomá-los com pergaminhos e emparveça-los num brasão de armas.
Muitos vinham pera estes reynos cobertos de oução (lêndeas) e se iam ao despois todos agalanados e muy paraltas; como lemos algures.
Que se fossem só agalanados e paraltas; bom proveito. Felizes daqueles a que a fortuna sorriu na terra alheia, sua pátria adoptiva; mas o pior é que essa pátria adoptiva, tema das mais requintadas declamações, recebeu não poucas vezes a ingratidão e o descrédito, como paga da sua confiança e hospitalidade.
A índole, ou feitio, em extremo dócil, sociável e confiante, acarreta aos povos as mesmas consequências funestas, que aos indivíduos. O homem, que abre de par em par a sua porta a um desconhecido e o admite na familiaridade do seu lar, não difere duma nação, que deixa entrar no seu mecanismo orgânico um ele­mento estranho, sem afinidade de sentimentos, nem comunidade de interesses.
Em tal casa há apenas um jogo de azar; as pro­babilidades de ganho são inferiores às de perda, tanto, quanto é diminuta a percentagem dos exemplares aproveitados na aclimatação de seres exóticos.
Portugal experimenta há muitos séculos, e conti­nua a experimentar, os resultados demonstrativos desta profunda verdade. Recebeu muitos serviços de estran­geiros, e pode orgulhar-se de lhos ter pago por seu justo valor; salvando-se, esta clara, as excepções que haveria pela força das circunstâncias, das quais come­çou por ser vitima um grande número dos nossos mais eminentes concidadãos. Poucos, porém, agradeceram a este país hospitaleiro os serviços e acolhimento que lhes prestou; e, se dele se lembraram depois, foi só para a depreciação e para o descrédito.
Se estudarmos a fundo as nossas diversas crises morais e económicas, bem como algumas complicações internacionais que nos custaram caríssimas, não as po­demos carregar em exclusivo à conta do elemento propriamente nacional; algumas há até, onde este figura simplesmente pela sua tolerância, umas vezes passiva. Outras vezes inconsciente.
Se, por outro lado, procurarmos as vítimas dessas derrocadas, encontraremos apenas o país com aqueles que lhe estavam indissoluvelmente presos por uma choupana, por uma jeira de terra, por um pedaço da sua alma.
Estas considerações escaparam-nos instintivamente ao dobrar a papelada e ao fechar os alfarrábios, por onde andámos a procura dos Perestrelos. Não foram eles que no-las inspiraram: pelo contrário, avultam como excepções honrosas, que se consubstanciaram no sangue português. Foi todo esse caleidoscópio assombroso, que nos suspendeu frequentemente a investigação, mergu­lhando-nos numa meditação profunda.
Para reunirmos uma família tresmalhada, como a dos Perestrelos, tropeçámos com muitos outros mortos e estacámos diante de verdadeiras surpresas. Aqui, tolices que nos fazem rir; ali, torpezas que nos revoltam; acolá, desgraças que nos provocam lágrimas; mais além, rasgos de valor e de civismo, que nos arrancam bênçãos.
Os Perestrelos, como toda a gente, pagaram o seu tributo de fragilidade humana; mas tão pequeno em relação aos méritos pessoais e brilhantes serviços de alguns deles, que mal se torna reparável.
O que se tem escrito até hoje a seu respeito vai, todavia, ser modificado, porque assim o exige a histó­ria, sem lhes prejudicar no conjunto as suas belas tradições de família.

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Filippone, ou Filippe Palestrello é o primeiro ascen­dente dos Perestrelos, que encontramos em Portugal, por fins do século XIV, entre outros muitos compatrio­tas seus, que vieram a este reino em busca de fortuna.
Filippone era filho de misser Gabriele Palestrello, natural da cidade de Placência (Lombardia) e de sua mulher madame Bartholine Biforti ([1]), que faleceram na mesma terra da sua residência e naturalidade. Tudo isto se depreende duma justificação, que ele apresentou para se eximir a uma derrama tributaria lançada por D. João I para custear a expedição naval a Ceuta.

(Placência - Palácio Medieval)

Além da sua filiação, provou Filippone Palestrello por algumas testemunhas suas conterrâneas serem os seus ascendentes em Itália fidalgos da cota de armas e de reconhecida nobreza, facto que o isentava do paga­mento do mencionado tributo.
Este processo justificativo, apenso ao respectivo alvará, tem a data de 8 de Janeiro de 1399, e ambas as peças constituem o primeiro e mais seguro vestígio cronológico, até agora encontrado, da existência de Fi­lippone em Portugal. ([2])
Achava-se ele então na cidade do Porto, mas em 1415 encontramo-lo com residência em Lisboa e já ca­sado com uma senhora portuguesa, D. Catarina de Melo, de quem teve os quatro filhos seguintes, por ordem do nascimento: Richarte ([3]), D. Isabel, D. Branca e Bartolomeu.
Antes, porém, de entrarmos no estudo biográfico do último, faremos algumas referências a seu irmão mais velho e à progénie distinta; de que foi tronco, bem como daremos notícia circunstanciada de suas irmãs, cujos destinos, além de oferecerem uma certa no­vidade histórica, proporcionaram a Richarte e a Bartolomeu uma das relações pessoais mais valiosas da época.
Richarte Palestrello seguiu a carreira eclesiástica, obtendo o lugar de prior da freguesia de Santa Mari­nha de Lisboa, então a mais rendosa talvez do arcebis­pado. Houve em Beatriz Anes dois filhos — João Lo­pes Perestrello e Sebastião Perestrello ([4]) — legitimados por carta datada de Sintra a 11 de Julho de 1423.
Do filho mais novo não alcançámos informações de maior interesse e fidelidade. O mais velho e herdeiro da casa de seu pai, João Lopes Perestrelo, já acreditado por um largo tirocínio nas lutas do mar, teve a capita­nia da Fradeza, uma das naus da expedição às Índias em 1502, comandada por Vasco da Gama, e distin­guiu-se por essa ocasião nas lutas com o gentio de Cochim. Voltando da Índia com um avultado pecúlio, João Lopes instituiu no termo de Alenquer um grande morgado, que denominou — do Espanhol.


(Vasco da Gama)

Dois dos seus cinco filhos, Rafael e Bartolomeu ([5]) serviram na Índia com grande distinção. De Malaca partiu Rafael Perestrelo para o reconhecimento das costas da China, onde lutou com vários revezes, entre eles um cativeiro de 30 dias, o que não obstou a que também ali fizesse grande fortuna. O nome ilustre, que adquiriu, valeu-lhe ser novamente escolhido para comandar uma das naus da armada de 1519, sob as or­dens de Jorge de Albuquerque.
Omitimos muitos outros membros da família de Richarte Palestrello, e os quais mereciam menção hon­rosa, para não avolumarmos estas notas, com desvio do nosso caminho directo. Os filhos de João Lopes, mercê da fortuna de seu pai, parece que ficaram todos nas melhores condições económicas; pois que entre ou­tros documentos, que examinámos no Corpo Cronológico da Torre do Tombo, relativos a eles neste ponto, deparou-se-nos uma provisão real, datada de 21 de Agosto de 1514 para se pagar a sua filha D. Mécia Lopes Perestrelo a importância de 310$760 réis, que se lhe de­viam por empréstimo.
As duas irmãs de Bartolomeu Perestrelo, D. Isabel e D. Branca, viveram sucessivamente com o céle­bre arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Noronha, perso­nagem notabilíssima pela opulência com que viveu e pelo seu elevado nascimento, pois que lhe circulava nas veias sangue de Henrique IV de Castela e de D. Fer­nando I de Portugal. ([6])
Estas relações, que podem atrair os reparos da nossa época, um tanto exagerada nos seus preconceitos sociais e numa aparente intransigência para com as infracções das leis civis e canónicas, naquele tempo eram viáveis à face da tolerância consuetudinária e dos exemplos promanados do seio das mais elevadas hierar­quias. ([7]) Escusamos de aduzir provas individuais onde apoiar o que adiantamos. Basta atender à descendência bastarda da alta nobreza e dos reis, sancionada pelo acolhimento, que se lhe fazia no próprio lar conjugal, pela sua representação desassombrada nos negócios públicos, e, finalmente, pela legitimação que co-honestava os actos, relevando as culpas dos progenitores e remo­vendo as máculas suspensas sobre a cabeça da progé­nie. A brilhante dinastia, que por aquele tempo presi­dia aos destinos do país, começara por um bastardo, um dos maiores reis, que empunharam o ceptro português.
D. Branca Dias Perestrelo e sua irmã D. Isabel, a quem por morte desta ela sucedera nas relações amo­rosas com o arcebispo, se não gozaram dos foros legais da esposa, pelo carácter sacerdotal do homem, a quem se prenderam nos impulsos irrefreáveis do coração, ti­veram todavia, a par da grande consideração social, as comodidades e honras duma casa verdadeiramente fidalga, e os frutos dessas uniões foram perfilhados perpetuando-se numa descendência pouco vulgar a to­dos os respeitos.
Parece que D. Isabel pouco tempo sobreviveu ao nascimento de seu filho D. João, alcaide-mor da vila de Óbidos, legitimado por carta de 13 de Agosto de 1444. Falecida esta senhora, na companhia da qual vivia a irmã D. Branca, cuja formosura, segundo o que lemos, não em inferior a de D. Isabel, a amizade fraternal, que o arcebispo lhe dedicava, transformou-se logo noutra ordem de afectos, visto o temperamento bem conhecido de D. Pedro de Noronha e a necessidade de substituir a sua defunta companheira, com a possível conciliação da estética e da conveniência administrativa.
Desta ultima união conhecem-se três filhos, também legitimados em 13 de Agosto, de 1444 ([8]) Foram os seguintes: D. Isabel, a quem nos vamos já referir; D. Diogo de Noronha, frade de S. Francisco e depois bispo de Lamego; D. Pedro de Noronha, um dos he­róis de Alcácer-Ceguer e comendador-mor da ordem de Santiago que foi encarregado por D. João II de diver­sas comissões de confiança, que sempre desempenhou com muito critério e proficiência. Teve a honra de re­presentar por procuração o príncipe D. Afonso no seu casamento com D. Isabel, filha dos Reis Católicos; e es­colhido por delegado de Portugal nas cerimónias da ele­vação de Inocêncio VIII ao pontificado, resolveu por essa ocasião varias questões que trazíamos pendentes da Sé Apostólica, devendo especializar-se a bula da cruzada para prosseguirmos nas guerras de Africa.
D. Pedro de Noronha, como lhe permitiam as suas rendas e alta influência na Côrte, encaminhou com ma­nifesta solicitude até invejáveis proeminências eclesiásticas e civis os filhos havidos das duas irmãs Perestrelo, que, sempre que precisaram, dispuseram do valioso patrocínio do afamado prelado.
Chegou, porém, um momento em que o prestígio deste começou a declinar rapidamente, e uma profun­da reviravolta se operou no seu regime doméstico. D. Branca Dias Perestrelo, em vésperas de ser mãe, foi de súbito enclausurada num mosteiro de Coimbra, por or­dem despótica do arcebispo, e ali deu a luz D. Isabel que em 1462 casou com o marquês de Montemor, filho do segundo duque de Bragança e um dos caudilhos da nobreza sublevada contra a política absorvente e centralizadora do Príncipe Perfeito.
D. Pedro de Noronha, que até então não posterga­ra de todo uns restos do decoro devido à sua pessoa e dignidade arquipiscopal, precipitou-se depois numa vida desregrada com outras mulheres, de que houve mais filhos, e D. Branca despeitada pelo seu abandono e vendo­-se preterida não tardou em sair do convento para ca­sar com Aires Anes de Beja, morador em Coimbra. Deste casamento houve larga descendência, conhecida pelos Perestrelos de Beja. ([9])

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Bartolomeu Perestrelo, o mais novo dos quatro filhos de Filippone, por morte de seu pai ficou a cui­dado de seus irmãos, e ainda de tenra idade obteve colocação na casa do infante D. João, estreitamente re­lacionada com a de seu irmão D. Henrique nas cam­panhas de África e no auspicioso início dos nossos descobrimentos marítimos. Depois foi cavaleiro da mesma casa.
A natureza dos serviços mais ou menos públicos, por ele prestados numa época de trabalhos tão variados e complexos, não é fácil, porém, de precisar por enquanto. Da mesma forma que os cronistas do tem­po passaram rapidamente por diversas personagens, cujos nomes nos transmitiram pelo simples motivo de relações com outros mais salientes, ou com um facto histórico, não consagraram a Bartolomeu Perestrelo, senão referências vagas, como povoador e donatário da ilha de Porto Santo.
Nestas duas mercês, principais vestígios da pas­sagem de Bartolomeu pela história, e que lhe foram feitas pelo infante D Henrique, admitiram-lhe alguns escritores implicitamente a dupla qualidade de homem de mar e de descobridor, a despeito da palavra séria de Azurara e de Barros.
Não duvidamos de que ele houvesse bem mere­cido da generosa amizade e confiança de D. Henrique pelos seus méritos pessoais e por alguns dos vários serviços, que tanto distinguiram outros homens do seu tempo sem ser nas lides do mar; não nos encostamos tão-pouco confiada e exclusivamente à crítica, que atribui à influência de D. Pedro de Noronha as graças que lhe foram dispensadas. O que, porém, não pode­mos em consciência concluir, pela que se lê em di­versos escritos, pelo teor dos documentos relativos a Bartolomeu, e ainda por palpáveis contradições cronológicas, é que Bartolomeu Perestrelo fosse desco­bridor da ilha de Porto Santo, ou colaborador impor­tante de Gonçalves Zarco e de Tristão Vaz nesse empreendimento marítimo.
Para o reconhecer como tal, invocam alguns escritores, avultando entre eles D. Francisco de S. Luís, a prática geral daqueles tempos, isto é, serem dadas as capitanias das terras descobertas aos que tinham a prioridade do descobrimento. Assim aconteceu muitas vezes, mas não com a generalidade que possa formar uma regra para abranger Bartolomeu Perestrelo.
Jácome de Bruges, primeiro povoador e donatário da ilha Terceira, e igualmente Joz de Utra da ilha do Faial, não tomaram a mínima parte no descobrimento das duas ilhas. E além destes outros exemplos, mais levam-nos a pôr de parte a ideia de uma prática geral, na concessão das capitanias. Lembraremos, contudo, ainda outro caso sintético que imprime um novo carácter à questão das doações.
É a que D. Afonso V fez a Fernão Teles da ilha das Flores, cuja jurisdição e senhorio se consideram geralmente dados em primeiro lugar a D. Maria de Vi­lhena, o que é um absurdo; ou, apesar das prescrições da lei mental então vigente, por ela obtidos de Gomes Dias Rodovalho, quando a referida D. Maria era mulher de Fernão Teles e por morte deste ficou administrando as Flores, como tutora de seu filho me­nor Rui Teles. ([10])
Os descobridores da ilha foram Diogo de Teive e seu filho João de Teive, e foi este último que transaccio­nou com Fernão Teles a trespasse de todos os seus direitos segundo uma carta régia de confirmação, da­tada de 28 de Janeiro de 1475. Que nos conste Fernão Teles nunca ali esteve depois de ser donatário, quanto mais andar às apalpadelas por aquela região capri­chosa do Atlântico em procura da formosa ilha.
Por outro lado, a carta de doação de Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo, bem como a de confirmação da venda, que sua viúva e um irmão desta Diogo Gil Moniz, tutores de seu filho menor Bartolomeu fizeram a Pedro Correia da Cunha, não aludem a quaisquer serviços que hajam imperado para tal mercê, e menos ainda a primazia de Bartolomeu, como descobridor. Pelo contrário, no segundo desses documentos até se diz: que ele me pediu por mercê, que porquanto seu desejo e vontade era povoar a minha ilha de Porto Santo, o que realmente não se compadece nem ainda com qualquer pressuposição de direitos imediatos, que ele tivesse à referida capitania.
Quanto a companheiro de Zarco e de Tristão no descobrimento, e principalmente a havê-los precedido na empresa, além das considerações anteriores, que nos parecem conclusivas, opõe-se a cronologia a verosi­milhança deste traço histórico de Bartolomeu Perestrelo. Tristão Vaz era já homem feito em 1418, época em que se fixa o encontro da primeira ilha do arquipélago da Madeira. Tinha ele então de 33 para 34 anos, e Zarco andava pela mesma idade, ou por mais avançada ainda, a concluir do que diz João de Barros com respeito aos herdeiros de Zarco disputarem as gló­rias de Tristão por este não ser homem de tanta idade e qualidade como João Gonçalves. Se uma diferença de idade, que não podia ser grande, constituía base para esse pleito moral entre os representantes dos dois he­róis, que faria se se pusessem dum lado os de Bartolomeu a litigar com os de ambos eles reunidos do outro.
Pois que, por diversos cálculos e, sobre tudo, pela época de que se pode aproximar o casamento de Filip­pone, segundo os nobiliários, notando que Bartolomeu foi o quarto fruto desse matrimónio, ele não te­ria mais de metade dessa idade, acrescendo ainda a circunstância considerável de D. Isabel Moniz, terceira mulher de Bartolomeu Perestrelo ser bisneta materna de Tristão Vaz.
Bartolomeu Perestrelo estava, portanto, numa idade pouco própria a atribuir-se-lhe, na falta absoluta de dados históricos que provem o seu talento precocíssimo para a vida do mar, o comando de qualquer expedição ou a sua escolha para representar nela um papel igual ao de Zarco e de Tristão, já celebres nas lides de África, e com o seu nome de marinheiros feito nas travessias de Portugal a Ceuta e a outros pontos nas costas norte e oeste do continente negro. Foi, sim, em companhia dos dois, na corrente entusiástica e sonhadora dos que se ofereceram para ir povoar Porto Santo, um novo paraíso pela mais jocosa das antifra­ses.
Em conclusão, a fama arranjada a Bartolomeu Perestrelo, como navegador não se estriba sequer em considerações de maior procedência. Que ele se tivesse distinguido em qualquer outro ramo de actividade da época, não está fora de razão e de justiça admiti-lo em face da mercê, que lhe fez o infante, e do bom acolhimento que lhe dispensaram famílias, ciosas do seu sangue e pergaminhos, com as quais ele contraiu alianças matrimoniais.
Liquidado, pois, este ponto de velho debate histórico, entremos noutras mais intimamente relacionados com a existência do capitão donatário da ilha de Porto Santo.



[1] Bartholomine Biforti, segundo outros. O apelido Biforti aparece pelo decurso do tempo, e na mesma família dos Perestrelos, escrito de diferentes modos: Biforte e Bisforti; e até uma terceira neta de Gabriel e de Bartholine se apelidou Brachiforti. Foi esta D. Leonor Perestrelo Brachiforti, filha de João Lopes Perestrelo e casada com Gil Vicente da Maia, falecido em 16 de Janeiro de 1451. Ambos jazem no cruzeiro dos Capuchos da Car­nota e no epitáfio ainda se lê claramente assim escrito o nome daquela senhora.
[2] Jacinto de Pina Loureiro, talvez o genealogista mais consciencioso e minucioso e que fundamenta quase sempre a sua extensa obra em provas irrefutáveis e documentos arquivados na Torre do Tombo, diz-nos que o documento acima existia ainda no começo do século XVII em mão de D. Leonor Lobo Perestrel­o, que era então casada com Diogo Saldanha, sendo por esse meio que se veio a saber quais eram os seus ascendentes e as armas que esta família usara em Itália.
As armas dos Perestrelos são: Escudo partido em pala; na primeira, em campo de oiro, um leão de púrpura armado de ver­melho; na segunda, em campo de prata, com banda azul, carrega­da de três estrelas de oito pontas entre seis rosas de vermelho de três em três em pala. Timbre o leão do escudo Com uma estrela na espádua.
[3] Seguimos exactamente o nome que lhe dá a carta de legitimação dos filhos, desprezando as variantes ortográficas, que se encontram nos genealogistas.
[4] Acompanhamos as modificações sucessivas que o apelido sofreu em Portugal, segundo o texto de diferentes escritores.
[5] Este Bartolomeu Perestrelo teve em galardão de seus serviços a provedoria da Fazenda Real de Malaca, sendo capitão-­mor Jorge de Albuquerque, ou, como quiserem, Jorge de Mello Pereira de Albuquerque.
[6] Tanto D. Pedro de Noronha, como seus irmãos, foram personagens importantes. D. Fernando, segundo conde de Vila Real, D. Sancho de Noronha, conde de Odemira e D. Constança de Noronha, 2.ª mulher de D. Afonso, primeiro duque de Bragan­ça, constituíram com seu irmão, o 3.º arcebispo de Lisboa, um núcleo de força social de primeira ordem.
[7] A mancebia não era coisa corrente, tolerada pelas leis e pelos usos, só na época a que nos referimos, e exclusiva do nosso país. Não incorreremos, porém, na indelicadeza desnecessária de entrar na casa alheia. De muitas provas, que temos, do que a tal respeito se passava entre nós desde os primeiros tempos da monarquia e das tristes condições sociais da mulher nos séculos passados, apenas indicámos ao leitor um documento, que se encon­tra no Livro 4.° de Além-Douro, a folhas 274. É a transacção efectuada entre D. Diniz e Branca Lourença. O rei dava-lhe a vila de Mirandela, motivando essa mercê da seguinte forma: E esta vos faço por compra do vosso corpo, e se Deus tiver por bem que eu haja de vos filho ou filhos, que a elles fique a dita villa.
Caso verdadeiramente assombroso para a época de hoje; mas o dr. Francisco Brandão, que aproveitou o documento na sua Monarchia Lusitana, diz-nos que essas coisas não eram estranhadas naquele tempo. E tanto o não eram, que D. Afonso, filho de D. Dinis, assina com seu pai aquele curiosíssimo papel! O mesmo cronista pondera, que a rainha Santa Isabel não o assinou, pelo decoro que se lhe devia guardar, visto que a mercê era feita a uma mulher, com quem o rei ofendia sua esposa. E faltava apenas para cúmulo que esta assinasse a transacção, em que figuram como testemunhas nada menos do que sete bispos, um mordomo-mor e um chanceler!
A compra do corpo de Branca Lourença estava perfeitamente válida com a assinatura de tantos maiorais da igreja romana e mais do que garantida pela rubrica dum infante em vésperas de ser rei.
De passagem: D. Diniz foi o fundador do convento de Odivelas, e com tanta solicitude velava pela recato das freiras, que nem estas podiam tomar banhos do mar senão sob a sua real pre­sença.
[8] O facto dos eclesiásticos legitimarem filhos era antigamen­te vulgaríssimo. Para que disso se faça uma ideia apontamos al­guns de muitos exemplos: Os bispos da Guarda, D. Gonçalo, D. João e D. Álvaro, legitimaram um grande número deles; alguns, ho­mens insignes. O bispo de Évora, D. Afonso, primo del-rei D. Manuel, reconheceu por seu filho a D. Francisco de Portugal, em 1515; o bispo do Porto D. João de Azevedo, a D. Manuel da Silva, em 1516 além de outros; e o de Viseu, D. João de Abreu a Diogo Gomes de Abreu em 1508.
Os seculares que houveram filhos de freiras, legitimando-os depois, também foram em quantidade considerável; e a própria circunstância das mães estarem no convento ao tempo da concepção e do parto, não obstava a legitimação. Como exemplos, apenas dois: o de D. António, filho de Rui de Sá e de Catarina de Lemos, freira da ordem de S. Bernardo, e o de Gonçalo de Barros, filho dum fidalgo do mesmo nome e de Isabel Dias, também freira professa.
Os próprios bastardos, havidos nas condições mais ofensivas de moralidade conjugal, gozaram sem estorvos do benefício de legitimação. João de Noronha, casado com D. Isabel de Sousa legitimou por filho em 1510 a Diogo de Noronha, nascido de uma escrava por nome Catarina, ao serviço doméstico de sua mu­lher. E como ele muitos outros, em casos idênticos, e as vezes ainda coloridos de circunstâncias mais aviltantes.
[9] Chegaram a tal ponto os actos imorais de D. Pedro de Noronha, que o povo o perseguia e injuriava pelas ruas, sendo-lhe tirado o governo do arcebispado e fugindo ele em seguida para Castela, donde regressou com certeza antes de Agosto de 1444, a concluir pelos actos da legitimação de seus filhos.
A época da saída pode determinar-se em 1439 por um docu­mento desse ano, que encontramos nos Elementos para a História do Município de Lisboa, do nosso distinto amigo Freire de Oliveira, um dos mais valiosos trabalhos de investigação moderna, a que a restrição do título encolhe aparentemente o valor de verdadeiro subsídio para a história geral do país. Esse documento é um alvará em que se ordena «que metade das rendas do arce­bispado de Lisboa fosse aplicada no pagamento das dívidas, que o arcebispo D. Pedro deixara e a outra metade nas coisas pertencentes ao mesmo arcebispo» — 8 de Dezembro de 1439.
Não deixam de ser curiosos os seguintes traços biográficos que nos dá Pina Loureiro:
D. Pedro de Noronha filho do l.º conde D. Afonso Henriques de Castela e de sua mulher a sr.ª D. Isabel. Vendo-se privado de seus estados pelas inquietações de seu pai, se fez eclesiástico e foi o 3.º arcebispo de Lisboa e prelado de grande autoridade e respeito, e assim por morte del-rei D. Duarte foi um dos adjuntos ao governo do infante D. Pedro; porém, seguiu nas dissenções, que teve a rainha D. Leonor com o dito infante, o parti­do da rainha, instigado por seu cunhado o duque de Bragança; cometeu depois acções indecentes a sua dignidade, e assim o senado de Lisboa lhe suspendeu as rendas e dignidades, e, vendo que em muitas terras se lhe perdia o respeito, se retirou a Castela donde depois voltou a este reino e retomou a inimizade an­tiga do infante de cuja morte e desgraça foi ele grande parte.
«Está sepultado na sua sé de Lisboa na capela do Sacramento e tem em sua sepultura o letreiro seguinte: Aqui jaz o Reverendíssimo em Cristo padre o Sr. D. Pedro Arcebispo desta cidade, neto do nobre rei D. Fernando de Portugal e neto de el-rei D. Henrique de Castela, cuja alma Deus haja; o qual se finou em 12 de Agosto de 1452.»
[10] D. Maria de Vilhena, à semelhança do que fez D. Isabel Moniz com a ilha do Porto Santo, também vendeu a ilha das Flo­res a João da Fonseca, com a diferença, porém, de que o acto de D. Maria foi reconhecido pelo filho como válido, enquanto que Bartolomeu Perestrelo n.º 2 propôs e conseguiu a anulação da venda feita por sua mãe a Pedro Correia da Cunha.

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