sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Rui de Pina x Garcia de Resende

A Crónica de Rui de Pina ficou manuscrita até ao final do século XVIII, já a obra de Garcia de Resende sobre o Príncipe Perfeito teve diversas edições ao longo dos séculos.
Garcia de Resende teve acesso ao manuscrito de Pina e usou-o como era usual na época, e não só porque este não era do conhecimento geral. Fez nisso o que outros também faziam: umas vezes citavam os autores, outras nem por isso. A citação, se é forma de fundamentar o que se diz, também é uma maneira demonstrar erudição, de mostrar o que se leu. É certo que pelo seu tempo já havia quem citasse outros autores a que recorria. Eram principalmente académicos, gente que frequentara as universidades ou que estudara formalmente com mestres já imbuídos do espírito da Renascença. Não é por acaso que ainda hoje se identifica a escola frequentada por uma pessoa pela maneira como faz as referências, como faz uma citação ou uma transcrição de texto antigo.
Garcia de Resende, privando muito de perto com D. João II, é talvez a pessoa que em todo o Reino melhor devia conhecer o rei. O relato que faz manifesta isso mesmo e essa é a sua principal intenção.
Os aspectos públicos da acção de D. João II já haviam sido tratados – e bem – pelo cronista oficial, Rui de Pina. Garcia de Resende, no final da vida, não terá querido perder tempo escrevendo penosamente de novo o que já estava feito. Limitou-se assim a copiar Pina, melhorando-lhe o estilo, corrigindo-o ou acrescentando-o quando achou necessário.

Alexandre Herculano é o fundador da historiografia contemporânea portuguesa, mas a ideologia que professava e que lhe permitiu lançar as bases dessa nova historiografia também lhe condicionou e enviesou frequentemente a análise histórica. Amando a Idade Média, desprezava a Moderna (contra o espírito da qual lutou activamente) e assim se permitiu a diminuir tudo o que era moderno. Rui de Pina e Garcia de Resende não escaparam assim ao desprezo a que votava quase tudo o que era dessa época e é esse mesmo desprezo que o leva a chamar plagiador a Resende. Ao aplicar-lhe um conceito muito caro ao seu tempo, cai no pecado mortal do historiador, o anacronismo; ao deixar-se levar pela ideologia revela uma das fraquezas humanas que, por vezes, tem tolhido o progresso da História.

A obra de Pina depois de escrita ficou inédita por alguns séculos por isso poderia ter ficado calado e nunca ter escrito a célebre palavra «italiano» e hoje não seria reputado de mentiroso. Resende, quando escreve, poderia ter dito que Cristóvão Colombo – por exemplo – era português de Colos, que se chamava Simão Palha e fôra usado para dar um império a Castela quando esta não tinha nenhum, pois nessa altura já não haveria qualquer motivo para manter secreto o suposto logro que D. João II teria montado. Resende, lendo «italiano» em Pina, sem qualquer razão que o justificasse não corrigiu esse dado e reproduziu-o acriticamente, quando era tão fácil omitir essa palavra.
Mas é evidente que Resende é um dos conspiradores, quiçá se não mesmo a autoridade por detrás de todo o pretenso embuste colombino.

Hoje denegrir-se Garcia de Resende com o único fim de eliminar um testemunho coevo passível de corroborar Pina, além de ruindade pura e simples, é desprezar a crítica como método historiográfico.


Transcreve-se agora parte do texto de Veríssimo Serrão sobre o plágio, ou não, de Garcia de Resende de que Rui de Pina seria a vítima.
Quer-nos parecer que a análise de Costa Pimpão é a mais válida para bem situar o assunto. Se o chamado plágio equivale a uma cópia literária, nem todas as cópias podem entender-se como plágios, tudo depende das condições em que se operou a transposição e do limite e finalidades que ela atingiu. O manuscrito de Rui de Pina achava-se na livraria real e era acessível a quem o quisesse manusear. Assim teria feito Resende, talvez para ajuizar da matéria em que a sua obra deveria respeitar a Croniqua, evitando narrações distintas do mesmo acontecimento. Os cânones da época não obrigavam um autor a citar fontes manuscritas, pelo que o silêncio de Garcia de Resende em relação ao cronista oficial, já então falecido, não pode traduzir um sentimento de má fé ou impudor. Ressalvada a intenção, inquire-se: onde e até que limite, Resende utilizou a obra de Rui de Pina?
Sendo-lhe possível utilizar o prólogo da Croniqua – quem podia, ao tempo, verificar o esbulho? –, o nosso autor não o fez, preferindo redigir um intróito sobre «as virtudes, feições, costumes e manhas» de D. João II. Para o efeito, serviu-se de muitas ideias do capítulo LXXXII do cronista, que alargou com o testemunho próprio. Quando se comparam os dois textos, a informação de Resende, quanto a dados íntimos, é de tal modo completa que deixa a perder de vista o relato de Pina. Seguindo o mesmo rastro, Resende teve o dom de transformar uma tela numa vistosa galeria pictórica em que o monarca e o homem são amplamente focados. Rui de Pina vira D. João II à distância, ainda que vivesse junto da corte, ao passo que o nosso autor conheceu-o na privança diária. Não entra quem pretende no mundo íntimo de um grande personagem: é preciso amá-lo, conhecê-lo e ter dons para o retratar. «A mim Garcia de Resende não tinha porta», enquanto os outros cortesãos «entravão apenas quando elRey o mandava».
O facto resulta em abono de Resende, uma vez que as suas páginas constituem o primeiro traçado psicológico, em matéria cronística, que se ergueu em Portugal. O nosso autor não quis redigir a história de um reinado, mas apenas a vida de um homem que fora príncipe e monarca. Por isso, consagrou os primeiros vinte e um capítulos à fase anterior ao «saimento» de 1481, enquanto na Croniqua de Rui de Pina essa matéria não existe. Entendia Resende não se compreender a realeza, sem a visão humana das «virtudes, feições, costumes e manhas» de D. João II.
O duplo rasto começa a verificar-se no capítulo II de Pina, que corresponde ao capítulo XXV de Resende e que descreve a fundação de S. Jorge da Mina. Daí por diante os dois textos caminham a par e nem sempre com desfavor para o poeta-cortesão, que em muitos casos retocou a prosa seca e enfastiante do cronista e lhe introduziu um fermento literário de sabor mais agradável. Como já escrevemos, a «história» de Resende contém o mais bem acabado figurino literário dos escritores do seu tempo. E basta comparar o capítulo XXVI, sobre a abertura das Cortes de Évora de 1481, com o capítulo III de Rui de Pina para ajuizar da distância estilística que os separa. Garcia de Resende utiliza uma prosa chã e natural, com um adjectivo adequado e uma frase bem talhada, que deixa na sombra o relato do cronista oficial.
O confronto segue, mais ou menos, até à cerimónia da transladação dos restos de D. João II, da catedral de Silves para o Mosteiro da Batalha, que corresponde aos capítulos LXXX de Pina e CCXIV de Resende. Este corrigiu muitas frases, alterou palavras e completou assuntos. As diferenças de pormenor avolumam-se no cotejo das obras: enquanto o cronista narra, de preferência, a história interna, os percursos régios, as relações diplomáticas, os feitos de África e cristianização do gentio, Garcia de Resende ocupa-se desses acontecimentos, ainda que com menos relevo, mas prefere a história íntima do monarca: episódios, falas, sentenças e anedotas que desvendam o homem mais do que o próprio rei. O conjunto informativo nem de longe se compara com o testemunho de Rui de Pina.
De todo o exposto pode concluir-se que Resende «trabalhou» a obra manuscrita de Pina com arranjos e interpolações de marca própria. Se em vários capítulos, sobretudo nos que se prendem à acção governativa, predomina o decalque, de outros apenas ressalta a apropriação de ideias que adaptou ao seu jeito. Mas em outras partes não nos resta dúvida de que Resende foi um escritor original, servindo-se da sua experiência de cortesão e da sua lembrança de confidente para trazer um contributo que lhe pertence de direito próprio.
Joaquim Veríssimo Serrão, «Prefácio», Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, INCM, imp. 1991, pp. XXXI-XXXIV.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Um ano

Há um ano, e na sequência de infelizes manipulações na Wikipédia Lusófona, criou-se esta página com o intuito de alertar o público em geral para erros e mistificações em torno de Cristóvão Colombo e que correm sob a forma de livros, artigos e inúmeros sítios na Internet.



Um ano depois o sucesso suplantou todas as expectativas para um projecto deste género, pois não aponta para o imediatismo, pretendendo-se desenvolver sem pressas e sem prazos.
Pese embora o facto de nenhum dos participantes se interessar pela figura do Almirante das Índias de Castela e de não ver nele grande interesse para a História de Portugal a não ser o resultado da sua primeira viagem ao Novo Mundo, tem-se procurado honestamente ver o que por aí se apregoa e criticamente demonstrar os erros, os sofismas, as falácias e até mesmo os oportunismos mais mesquinhos que se vão desenvolvendo em volta deste personagem.
A pseudo-história colombina só por si é inócua; é inofensiva e até mesmo infantil. Colocando como hipótese académica a possibilidade desta estar certa (qual delas é indiferente!) nada no passado, presente ou futuro será mudado. O seu impacto no devir histórico é nulo ou próximo disso.
Próximo disso porque o problema está na afirmação da pseudo-história como detentora da verdade ou duma verdade alternativa e, como consequência lógica (não que isso importe muito na pseudo-história), desacredita-se o esforço e o trabalho dos historiadores ao longo dos séculos, abrindo a porta para a legitimação e justificação de narrativas ditas históricas mas que na realidade deturpam o passado muitas vezes com o objectivo de impor novas realidades, sociedades e formas de poder.
Só as sociedades autoritárias necessitam de pseudo-história para se legitimarem e justificarem. As sociedades abertas, prezando o direito à liberdade de expressão e consequentemente o direito à asneira, permitem a pseudo-história produzida por sectores marginais do seu corpo, mas não podem permitir que esta seja divulgada sem crítica e é assim que na insignificante questão colombina se insere o nosso modesto papel.
A avaliar pela maior parte dos comentários aqui publicados pelos que (tres)lêem estas páginas, e se fossemos uns marcianos acabados de aterrar neste mundo, poderíamos falsamente concluir pelo insucesso desta iniciativa, pois a ilusão criada é a de que de nada serve mostrar os erros nos pormenores, tais como Zarquo não ser o mesmo que Zargo, que Filipa Moniz não é D. Filipa Moniz; que a nobreza portuguesa do século XIV não é como a sociedade de castas indiana; que as teorias mirabolantes em torno de Colombo são um fenómeno recorrente no tempo, principalmente desde o 4.º centenário da sua chegada ao Novo Mundo e que todos os autores por detrás destas ideias se têm copiado uns aos outros, repetindo as mesmas asneiras e acrescentando por sua vez umas quantas mais da sua lavra.
Assim Luciano da Silva vai inspirar Henrique Zarco que por seu turno inspirará Manuel Rosa e o discreto Eric Steele. Cada novo autor deixa para trás o seu antecessor criando novos factos aonde os não há, interpretando-os isolados abusiva e arbitrariamente e, do mesmo modo, posteriormente inseridos em contextos que lhe são de todo desconformes.
Na pseudo-história colombina falha tudo a nível historiográfico. A teoria da história é desprezível; a metodologia é a do tudo a eito (quanto mais confusão e quanto mais diversas forem as áreas melhor); a ignorância de paleografia conduz a fantasias delirantes; a lógica (quando a há) é abstrusa; heurística e hermenêutica são palavrões difíceis de pronunciar e incompreensíveis quando se tenta a sua prática. Em suma e para não alongar demasiado, tudo o que constitui práticas e normas do ofício do historiador é subvertido em função de interesses obscuros.


Como teste aos nossos leitores fez-se aqui um pequeno inquérito sobre a utilidade desta página. Havia nisto um objectivo predefinido que era demonstrar o maior empenho dos seguidores das ideias pseudo-históricas nas suas causas. Esse objectivo foi atingido.
Tivemos, no entanto, uma surpresa. Não contávamos com tantos votos na primeira opção.

Votos em 4 de Novembro e em 15 do mesmo mês.

O gráfico mostra três dias de actividade inusual, ficando muito acima do que é normal em visitas a esta casa. É em dias como este que lamentamos não ter publicidade na nossa página.

Visitas entre 8 e 15 de Novembro de 2007

Uma última informação: desde a criação da Pseudo-História Colombina tivemos 25.000 visitantes. Nada mau se considerarmos a aridez do tema.

sábado, 10 de novembro de 2007

O código Colombo - O Método da Sopa de Letras

Mascarenhas Barreto, depois de Patrocínio Ribeiro, Pestana Júnior, et al. e uns anos antes de Doron Witztum, Eliyahu Rips, e Yoav Rosenberg inventarem o Código do Génesis, aplicou à assinatura de Cristóvão Colombo aquilo a que chamou o método cabalístico, mas que (nesta variante) com melhor propriedade se pode chamar de Método da Sopa de Letras.
Munido desse poderoso instrumento analítico gerou várias séries de caracteres donde sem grande esforço, mas não menor arrebatamento, extraiu das letras que figuram na assinatura de Cristóvão Colombo o nome Salvador Fernandes Zarco (e não importa que já antes outros, com menor esforço e menos palavreado, lhe tivessem chamado Salvador Gonçalves Zarco, entre outros epítetos).


Um dos muitos quadros de seriação de caracteres resultado da aplicação do Método da Sopa de Letras. Repare-se nos originais pormenores dos itálicos ou de como até existem reais palavras portuguesas pelo meio e que foram totalmente desprezadas na construção do personagem SFZ.
Mascarenhas Barreto, Cristóvão Colombo..., 2.ª ed., Lisboa, imp. 1988, p. 351.


Salvador Fernandes Zarco (SFZ, para os íntimos e para os amigos da vinhaça) é caso único em toda a História Universal. A Sopa de Letras que o gerou não mais foi usada para a revelação dos mistérios históricos. Será um daqueles moldes perdidos depois do uso? É que para além do alienado navegador – que demorando mais um pouco a compor a assinatura nunca seria almirante e ainda hoje pastariam bisontes nas Grandes Planícies – ninguém mais usou, que se saiba, esta ou semelhante chave de encriptação. Será que, em alternativa, deixou de haver historiadores capazes de identificarem a utilização da Chave Sopa de Letras e por isso mesmo ninguém mais foi descoberto como não sendo quem se pensava ser?

Genealogia de Cristóvão Colombo, na versão Salvador Fernandes Zarco, resultante da aplicação por Mascarenhas Barreto do método cabalístico à assinatura do Almirante.
(Clicar na imagem para ampliar)

(Última actualização: 25-02-2010)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Há erros que arrasam uma tese

«A 4 de Março de 1493 dá-se um acontecimento que obriga de imediato à redefinição da correlação de forças que se fora conseguindo instalar. Nesse dia arribou ao Restelo Cristóvão Colombo...»
F. Contente Domingues, «A disputa pela posse do Atlântico e a política de D. João II. O tratado de Tordesilhas», Portugal no Mundo, dir. Luís de Albuquerque, vol. 1, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest/Alfa, © 1989, imp. 1993, p. 375.

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Quem erra numa coisa não errará noutra?


Adenda:
Hoje nenhum historiador tem pretensões a dominar toda a informação disponível, sobretudo os estudos, sobre as matérias que estuda; também por isso (e para além do decoro) nenhum historiador afirma ser o primeiro a descobrir um qualquer detalhe menor, pois essa pretensa descoberta já poderá estar publicada há muito num qualquer artigo esconso duma publicação obscura. No caso em apreço, F. Contente Domingues terá optado por uma data em detrimento de outra com boas razões, ou crer-se-á que nunca leu Rui de Pina?

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Conferência - O Estado do Brasil: estruturas políticas e colonização

O Atlântico Ibero-Americano (sécs. XVI-XVIII)

Perspectivas historiográficas recentes

2º Ciclo de Conferências - 2007

Pedro Puntoni
(Universidade de São Paulo)

O Estado do Brasil: estruturas políticas e colonização

6 de Novembro - 17h30 - Sala Polivalente
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, n.º 9 - 1600-189 LISBOA


Organização:

Nuno Gonçalo Monteiro, Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa
Mafalda Soares da Cunha, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades – Universidade de Évora
Pedro Cardim, Centro de História de Além-Mar – Universidade Nova de Lisboa
José Damião Rodrigues, Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais – Universidade dos Açores