Garcia de Resende teve acesso ao manuscrito de Pina e usou-o como era usual na época, e não só porque este não era do conhecimento geral. Fez nisso o que outros também faziam: umas vezes citavam os autores, outras nem por isso. A citação, se é forma de fundamentar o que se diz, também é uma maneira demonstrar erudição, de mostrar o que se leu. É certo que pelo seu tempo já havia quem citasse outros autores a que recorria. Eram principalmente académicos, gente que frequentara as universidades ou que estudara formalmente com mestres já imbuídos do espírito da Renascença. Não é por acaso que ainda hoje se identifica a escola frequentada por uma pessoa pela maneira como faz as referências, como faz uma citação ou uma transcrição de texto antigo.
Garcia de Resende, privando muito de perto com D. João II, é talvez a pessoa que em todo o Reino melhor devia conhecer o rei. O relato que faz manifesta isso mesmo e essa é a sua principal intenção.
Os aspectos públicos da acção de D. João II já haviam sido tratados – e bem – pelo cronista oficial, Rui de Pina. Garcia de Resende, no final da vida, não terá querido perder tempo escrevendo penosamente de novo o que já estava feito. Limitou-se assim a copiar Pina, melhorando-lhe o estilo, corrigindo-o ou acrescentando-o quando achou necessário.
Alexandre Herculano é o fundador da historiografia contemporânea portuguesa, mas a ideologia que professava e que lhe permitiu lançar as bases dessa nova historiografia também lhe condicionou e enviesou frequentemente a análise histórica. Amando a Idade Média, desprezava a Moderna (contra o espírito da qual lutou activamente) e assim se permitiu a diminuir tudo o que era moderno. Rui de Pina e Garcia de Resende não escaparam assim ao desprezo a que votava quase tudo o que era dessa época e é esse mesmo desprezo que o leva a chamar plagiador a Resende. Ao aplicar-lhe um conceito muito caro ao seu tempo, cai no pecado mortal do historiador, o anacronismo; ao deixar-se levar pela ideologia revela uma das fraquezas humanas que, por vezes, tem tolhido o progresso da História.
A obra de Pina depois de escrita ficou inédita por alguns séculos por isso poderia ter ficado calado e nunca ter escrito a célebre palavra «italiano» e hoje não seria reputado de mentiroso. Resende, quando escreve, poderia ter dito que Cristóvão Colombo – por exemplo – era português de Colos, que se chamava Simão Palha e fôra usado para dar um império a Castela quando esta não tinha nenhum, pois nessa altura já não haveria qualquer motivo para manter secreto o suposto logro que D. João II teria montado. Resende, lendo «italiano» em Pina, sem qualquer razão que o justificasse não corrigiu esse dado e reproduziu-o acriticamente, quando era tão fácil omitir essa palavra.
Mas é evidente que Resende é um dos conspiradores, quiçá se não mesmo a autoridade por detrás de todo o pretenso embuste colombino.
Hoje denegrir-se Garcia de Resende com o único fim de eliminar um testemunho coevo passível de corroborar Pina, além de ruindade pura e simples, é desprezar a crítica como método historiográfico.
Transcreve-se agora parte do texto de Veríssimo Serrão sobre o plágio, ou não, de Garcia de Resende de que Rui de Pina seria a vítima.
Quer-nos parecer que a análise de Costa Pimpão é a mais válida para bem situar o assunto. Se o chamado plágio equivale a uma cópia literária, nem todas as cópias podem entender-se como plágios, tudo depende das condições em que se operou a transposição e do limite e finalidades que ela atingiu. O manuscrito de Rui de Pina achava-se na livraria real e era acessível a quem o quisesse manusear. Assim teria feito Resende, talvez para ajuizar da matéria em que a sua obra deveria respeitar a Croniqua, evitando narrações distintas do mesmo acontecimento. Os cânones da época não obrigavam um autor a citar fontes manuscritas, pelo que o silêncio de Garcia de Resende em relação ao cronista oficial, já então falecido, não pode traduzir um sentimento de má fé ou impudor. Ressalvada a intenção, inquire-se: onde e até que limite, Resende utilizou a obra de Rui de Pina?
Sendo-lhe possível utilizar o prólogo da Croniqua – quem podia, ao tempo, verificar o esbulho? –, o nosso autor não o fez, preferindo redigir um intróito sobre «as virtudes, feições, costumes e manhas» de D. João II. Para o efeito, serviu-se de muitas ideias do capítulo LXXXII do cronista, que alargou com o testemunho próprio. Quando se comparam os dois textos, a informação de Resende, quanto a dados íntimos, é de tal modo completa que deixa a perder de vista o relato de Pina. Seguindo o mesmo rastro, Resende teve o dom de transformar uma tela numa vistosa galeria pictórica em que o monarca e o homem são amplamente focados. Rui de Pina vira D. João II à distância, ainda que vivesse junto da corte, ao passo que o nosso autor conheceu-o na privança diária. Não entra quem pretende no mundo íntimo de um grande personagem: é preciso amá-lo, conhecê-lo e ter dons para o retratar. «A mim Garcia de Resende não tinha porta», enquanto os outros cortesãos «entravão apenas quando elRey o mandava».
O facto resulta em abono de Resende, uma vez que as suas páginas constituem o primeiro traçado psicológico, em matéria cronística, que se ergueu em Portugal. O nosso autor não quis redigir a história de um reinado, mas apenas a vida de um homem que fora príncipe e monarca. Por isso, consagrou os primeiros vinte e um capítulos à fase anterior ao «saimento» de 1481, enquanto na Croniqua de Rui de Pina essa matéria não existe. Entendia Resende não se compreender a realeza, sem a visão humana das «virtudes, feições, costumes e manhas» de D. João II.
O duplo rasto começa a verificar-se no capítulo II de Pina, que corresponde ao capítulo XXV de Resende e que descreve a fundação de S. Jorge da Mina. Daí por diante os dois textos caminham a par e nem sempre com desfavor para o poeta-cortesão, que em muitos casos retocou a prosa seca e enfastiante do cronista e lhe introduziu um fermento literário de sabor mais agradável. Como já escrevemos, a «história» de Resende contém o mais bem acabado figurino literário dos escritores do seu tempo. E basta comparar o capítulo XXVI, sobre a abertura das Cortes de Évora de 1481, com o capítulo III de Rui de Pina para ajuizar da distância estilística que os separa. Garcia de Resende utiliza uma prosa chã e natural, com um adjectivo adequado e uma frase bem talhada, que deixa na sombra o relato do cronista oficial.
O confronto segue, mais ou menos, até à cerimónia da transladação dos restos de D. João II, da catedral de Silves para o Mosteiro da Batalha, que corresponde aos capítulos LXXX de Pina e CCXIV de Resende. Este corrigiu muitas frases, alterou palavras e completou assuntos. As diferenças de pormenor avolumam-se no cotejo das obras: enquanto o cronista narra, de preferência, a história interna, os percursos régios, as relações diplomáticas, os feitos de África e cristianização do gentio, Garcia de Resende ocupa-se desses acontecimentos, ainda que com menos relevo, mas prefere a história íntima do monarca: episódios, falas, sentenças e anedotas que desvendam o homem mais do que o próprio rei. O conjunto informativo nem de longe se compara com o testemunho de Rui de Pina.
De todo o exposto pode concluir-se que Resende «trabalhou» a obra manuscrita de Pina com arranjos e interpolações de marca própria. Se em vários capítulos, sobretudo nos que se prendem à acção governativa, predomina o decalque, de outros apenas ressalta a apropriação de ideias que adaptou ao seu jeito. Mas em outras partes não nos resta dúvida de que Resende foi um escritor original, servindo-se da sua experiência de cortesão e da sua lembrança de confidente para trazer um contributo que lhe pertence de direito próprio.