A popularidade relativa que goza actualmente na literatura o romance histórico só deverá encontrar paralelo na prolixidade de escritos pseudocientíficos. Tratam-se de constatações resultantes duma observação não sistemática e que se não correspondem à realidade devem andar por perto, quanto mais não seja pela exposição privilegiada que obtêm nos escaparates e nos media, enquanto a historiografia passa quase despercebida.
O romance histórico está na moda e a razão de tal acontecer deverá radicar tanto na apetência do público, como no retorno financeiro para as editoras e autores.
Presentemente não há grande disponibilidade para a leitura, limitando-se esta, dum modo geral e para além da leitura profissional, a obras cuja fórmula de base se conhece e agrada ou então ao que é anunciado como sucesso editorial pela crítica e comentadores, através da publicidade e comunicação social. Também dificilmente as pessoas têm hoje o tempo ou a predisposição para lerem descrições de algo parecido a viagens entre Lisboa e o Carregado ou histórias inanes como a da Joaninha. Numa época em que tudo é superficial e na qual tudo o que se faz tem de ter uma utilidade prática, incluindo o lazer, não se pode perder tempo com ficção pura e dura. Com este sentido utilitário e superficial do «dois em um», o grande público consumidor de romances históricos junta ao consumo de literatura de ficção a pretensão do saber histórico, apaziguando o sentimento de inutilidade do primeiro exercício com a satisfação do conhecimento do real, mesmo quando sabe que não se trata inteiramente duma coisa ou de outra.
Havendo da parte do público grande apetência para este subgénero literário, as editoras não hesitam em publicar, pois sabem que o investimento é seguro e de rápido retorno, parecendo que a condição mínima para a publicação é os autores terem esboçado um enredo relativamente novo e umas linhas mais ou menos bem redigidas (e quando assim não é os departamentos editoriais poderão encarregar-se de dar um jeito). Nesta conjuntura de mercado, os autores podem tirar os escritos das gavetas e até, com um pouco de sorte, deixar as suas anteriores actividades para passarem a viver exclusivamente da escrita.
De estranhar seria que o passado humano não fosse fonte inspiradora de inúmeros autores e de deleite de ainda mais leitores, pois na História encontram-se factos, situações e cenários que podem ultrapassar qualquer ficção. A ficção tradicional já quebrou todos os dogmas formais e todos os tabus políticos, sociais, religiosos e morais, tornando-se-lhe cada vez mais difícil encontrar temáticas novas que mexam com as emoções das pessoas. Por outro lado a História, por ser real, ainda vai conseguindo mexer com essas emoções; dramatizando situações históricas facilita-se a identificação do leitor com a narrativa, cativando-o com enredos que, muito provavelmente, não resultariam se se tratasse de ficção pura.
Independentemente das razões que levam ao sucesso do romance histórico este pode cumprir todas as funções úteis (e inúteis) da literatura tradicional. Aliás, as gradações existentes entre os dois tipos são tantas e tão subtis que se torna cada vez mais difícil proceder à classificação em géneros ou em subgéneros. Mas tal também é irrelevante, devendo bastar, sem preconceitos, a avaliação subjectiva de boa ou má literatura e a classificação objectiva entre História e ficção.
Não deve haver historiador que na sua juventude não tenha lido Walter Scott, Alexandre Dumas ou Emilio Salgari, assim como não deverá haver físico que não tenha lido Ray Bradbury, Robert A. Heinlein ou Arthur C. Clark. Provavelmente tanto o historiador como o físico leram-nos a todos e, dum qualquer modo, acabaram por ser marcados por essas leituras. Alexandre Herculano ou de Isaac Asimov, como muitos outros ficcionistas, até eram respeitáveis cientistas e, por ventura, atingiram mais público no exercício da primeira função do que no da segunda. Assim sendo, ao involuntariamente estimular jovens a tornarem-se cientistas, a ficção terá contribuído para o progresso da Ciência, da mesma maneira que poderá contribuir para que o grande público possa interessar-se por ela.
O romance histórico é muito mais popular que a historiografia porque enquanto ao primeiro género é legítimo o recurso a todos os artifícios literários, ao segundo esses são-lhe vedados por ser fortemente condicionado pela metodologia convencionada pela comunidade científica que o irá validar ou não (e não vale a pena entrar aqui na discussão de ser a História uma ciência ou uma arte). Enquanto o escritor tem toda a liberdade para preencher as lacunas que existam nos dados históricos fazendo uso da sua imaginação criadora, o historiador, perante o mesmo problema, fica limitado a conjecturas e hipóteses que têm de se enquadrar num quadro de possibilidades epocais, além de ter de as assinalar devidamente como tal. Assim, as peripécias colombinas secamente narradas por Garcia de Resende e Rui Pina – mesmo que contadas por outrem que os use como base conjuntamente com as outras fontes conhecidas – não têm qualquer possibilidade de competir no mercado editorial de massas com a pseudo-história do mesmo almirante escrita por Mascarenhas Barreto ou o romance de Rodrigues dos Santos e muito menos com as intrigas, de outra ordem, integralmente ficcionadas por John le Carré ou Michael Crichton.
Enquanto que o trabalho do historiador é o resultado de 90% de transpiração e 10% de inspiração, o trabalho do escritor deverá obedecer à relação inversa. Também o reconhecimento do mérito pelo grande público é repartido de forma desigual e em benefício do escritor, já que a necessidade de rigor que o texto historiográfico deve ter retira-lhe todo o brilho artístico, o que aliado ao facto de a maioria dos historiadores não ficar a dever muito às musas da escrita torna pouco apetecível e pouco comerciável os seus escritos.
A estas duas literaturas juntou-se uma outra, a pseudo-história. Esta é um género bastardo – misto de história e ficção – que se quer fazer passar por História e recusa terminantemente que se lhe chame ficção.
Não sendo um género novo, pois sempre existiu vindo a público em edições de autor ou dados à estampa em pequenas casas da especialidade marginais ao sistema editorial dominante, ganhou nos últimos anos grande pujança ao encontrar na Internet um meio de divulgação barato e de grande alcance. O sucesso no mundo virtual, medido pela quantidade e reacções das assistências, acabou por atrair a atenção das editoras tradicionais que viram nesse género mais uma possibilidade de fazer dinheiro desde que se disponibilizassem a investir na produção de campanhas de publicidade de boa envergadura – conferências, entrevistas em todos os media e, claro, anúncios.
Obviamente, como referido, quem produz pseudo-história não admite estar a fazer algo de pseudo, de falso. Quando muito admitirá estar a fazer história alternativa. Mas isso é o mesmo que dizer ser possível fazer ciência alternativa – como se a maçã que, neste Universo, cai da árvore pudesse em alternativa subir da árvore.
Quem produz este tipo de escrita invocará que em História os mesmos factos são passíveis de interpretações diversas dependendo de quem as faz e que isso, à luz dos métodos historiográficos, não retira mérito ao historiador nem desacredita as conclusões – outros poderão até ver nisso a impossibilidade de a História se constituir como uma ciência.
No entanto a pseudo-história – mais difícil de definir que a pseudociência já que o método da segunda é mais exigente do que o da primeira – é assim definida não porque perante os mesmos dados chega a conclusões diferentes, mas porque falsifica, deturpa e omite factos relevantes para servirem interesses, por vezes tenebrosos, de pessoas ou de grupos que nada têm a ver com a História enquanto tentativa honesta de conhecimento do passado humano.
A pseudo-história baseia-se em teorias da conspiração; parte de pressupostos falsos – a que nem se podem chamar de hipóteses – e estes pressupostos acabam por ser as conclusões; assenta em documentos únicos, descontextualizados, secundários, falsos; é dogmática; não é autocrítica nem se submete à crítica, tomando-a como detractora despeitada. A lista de características é longa e poderia continuar mas em tudo seria diferente daquilo que deve ser a História.
Aos indivíduos de hoje exige-se no dia-a-dia profissional uma racionalidade e competência técnica extremas. Os indivíduos especializam-se de tal maneira que muito pouca disponibilidade lhes fica para poderem dominar outras matérias para além da superfície e da banalidade. Vivem numa sociedade onde existem breves momentos ou curtos espaços informativos, nos quais confiam, entremeados entre grossas fatias de entretenimento mentalmente debilitante, quando não boçal. Quase como um contraponto às exigências profissionais, alguns desses mesmos indivíduos, tendem a afrouxar a racionalidade que possuem – como que se o baixar dessas guardas constituísse uma forma de descanso – e passam a confiar na informação que assim embrulhada lhes é fornecida.
O erro de quem confia acriticamente na informação que lhe é dada reside no facto de pressupor que quem a produz está a agir com a competência técnica e a racionalidade que é exigida a quem a recebe quando está no exercício da sua actividade profissional. Mas nem sempre é assim. Quem fornece informação pode errar, de boa ou de má-fé, pelas razões mais diversas, sendo uma delas o interesse económico, se outro ainda mais obscuro não houver. Ora, é precisamente por não se querer cair neste tipo de erro de credulidade que se cai no oposto, que se cai na pseudociência, na pseudo-história. A popularidade da pseudociência e da pseudo-história passa então a dever-se ao inconformismo, à recusa da normalização e da massificação ou, mais grave ainda, da vontade de negação da realidade tal como ela é entendida ou explicada.
Quando produtores de informação ou entidades respeitáveis, e como tais tidos por credíveis, por lapso ou não, veiculam, acabando por publicitar, teses pseudo-históricas sem as devidas ressalvas, estão a contribuir para a sua difusão, legitimação e perpetuação das mesmas. Não se trata de censura nem de cercear a liberdade de expressão. Trata-se tão só de advertir os menos informados de que se trata de matéria contestada ou contestável pela comunidade científica por ir ao arrepio da prática estabelecida e tida como boa. Afinal, sem limitar a liberdade de expressão, já existem mecanismos de advertência prévia do eventual público de espectáculos e actividades que podem ferir susceptibilidades.
Ao abrigo da liberdade de expressão a pseudo-história tem todo o direito de existir mesmo apresentando os maiores dislates como o da negação do Shoah, que Colombo era agente secreto ou que os chineses descobriram os Açores. Contudo, também ao abrigo da liberdade de expressão, tem que estar disponível para a crítica, o que pode ser um exercício quase inútil já que os seus produtores, dogmáticos, nunca a reconhecem e os incautos que tomaram esses disparates como certos ou não têm acesso à crítica – porque nunca recebe a mesma atenção dos media – ou então tornam-se eles mesmos coniventes com a fraude.
À referida quase inutilidade da crítica juntam-se as dificuldades em fazê-la bem feita. É que nem sempre há tempo, paciência ou o incentivo para a fazer. O primeiro obstáculo a passar é a verborreia pseudo-histórica destinada a cobrir com uma cortina de fumo o pequeno conjunto de ideias em que consiste a tese. Depois há que procurar na enxurrada de factos que sempre se apresentam os que realmente contribuem (ou poderiam contribuir) para a tese, separando-os daqueles que são meramente decorativos e que pretendem demonstrar a profundidade e vastidão do trabalho. Neste processo pode-se logo ir assinalando os falsos, os deturpados e os descontextualizados para no fim acrescentar os que aí faltam e não deveriam faltar. Estando-se perante pseudo-história o processo poderia acabar aqui, pois as falhas já encontradas seriam suficientes para o parar, no entanto, se o crítico for persistente ou se estiver a cumprir alguma penitência poderá continuar e ver se os factos que sobram (e os que faltam) permitem sustentar a tese. Por ventura, os factos apresentados são tão díspares entre si ou as conclusões parcelares tão (pseudo)técnicas que o crítico tem de recorrer a especialistas dessas áreas (se os houver) para obter um parecer competente, quando não é a totalidade dos factos e conclusões apresentados no trabalho a precisar críticas especializadas. Ao contrário da pseudo-história que é vendida ao grande público, o trabalho dos críticos não é remunerado, pelo que não pode ser feito como poderia ser, mas também – muitos dirão – não deverá valer a pena fazê-la.
A História, é por definição séria. Trata-se dum inquérito metódico e sujeito a crítica constante que pode prolongar-se por séculos. Nela o erro é sempre passível de correcção. O erro é admissível e até mesmo aceitável se for resultado de boa-fé ou de limitações intelectuais (há historiadores mais inteligentes que outros) ou materiais (impossibilidade de aceder a uma fonte determinante). A História é um conhecimento que se vai construindo geração após geração, sem pretensões à verdade absoluta e com disponibilidade para aceitar a novidade fundamentada que eventualmente vá aparecendo. Todo o historiador sonha em dar um contributo notável para o avanço significativo da História. A maior parte deles ficará sem satisfazer esse desejo, não porque tema o ridículo de expor uma nova teoria que vá contra a norma existente e que lhe garantiria um lugar na História da Historiografia, mas porque é honesto e as hipóteses revolucionárias ou situacionistas que vai formulando acabam por não ter fundamentação, não saindo por isso donde nunca deveriam sair – da gaveta.
Dan Brown (O Código Da Vinci), Miguel Sousa Tavares (Equador) ou José Rodrigues dos Santos (Codex 632) escrevem literatura (romances históricos) e, aparentemente, não a pretendem vender como História – não querem vender gato por lebre – se bem que para muitos dos seus leitores as realidades que romanceiam passem a ser a realidade histórica. Como tudo e como todos, alguns destes autores ou as suas obras poder-se-ão tornar históricos, algo que só a própria História poderá vir a determinar e não a vontade presente de algum publicitário ou bajulador. As polémicas em que se possam ver envolvidos ou em que voluntariamente se envolvam poder-se-ão, ou não, tornar históricas ou objectos da História. Seja como for, o valor histórico será determinado pelos historiadores futuros.
Gavin Menzies (1421: o ano em que a China descobriu o mundo), Mascarenhas Barreto (O Português Cristóvão Colombo Agente Secreto do Rei D. João II) ou Luciano da Silva – não confundir com Luciano Pereira da Silva, 1864-1926 – [Cristóvão Colon (Colombo) era Português], fazem pseudo-história, pois pretendem vender as suas ideias (e as alheias, no que não ficam sozinhos) como sendo História; fazem maus romances históricos já que lhes falta a dinâmica narrativa que os anteriores têm. No entanto têm o desplante de querem passar um atestado de incompetência a toda a comunidade científica, passada e presente. E nisto as editoras são cúmplices, senão mesmo co-responsáveis por um logro – tal como o talhante que vende gato em vez de lebre.
O romance histórico está na moda e a razão de tal acontecer deverá radicar tanto na apetência do público, como no retorno financeiro para as editoras e autores.
Presentemente não há grande disponibilidade para a leitura, limitando-se esta, dum modo geral e para além da leitura profissional, a obras cuja fórmula de base se conhece e agrada ou então ao que é anunciado como sucesso editorial pela crítica e comentadores, através da publicidade e comunicação social. Também dificilmente as pessoas têm hoje o tempo ou a predisposição para lerem descrições de algo parecido a viagens entre Lisboa e o Carregado ou histórias inanes como a da Joaninha. Numa época em que tudo é superficial e na qual tudo o que se faz tem de ter uma utilidade prática, incluindo o lazer, não se pode perder tempo com ficção pura e dura. Com este sentido utilitário e superficial do «dois em um», o grande público consumidor de romances históricos junta ao consumo de literatura de ficção a pretensão do saber histórico, apaziguando o sentimento de inutilidade do primeiro exercício com a satisfação do conhecimento do real, mesmo quando sabe que não se trata inteiramente duma coisa ou de outra.
Havendo da parte do público grande apetência para este subgénero literário, as editoras não hesitam em publicar, pois sabem que o investimento é seguro e de rápido retorno, parecendo que a condição mínima para a publicação é os autores terem esboçado um enredo relativamente novo e umas linhas mais ou menos bem redigidas (e quando assim não é os departamentos editoriais poderão encarregar-se de dar um jeito). Nesta conjuntura de mercado, os autores podem tirar os escritos das gavetas e até, com um pouco de sorte, deixar as suas anteriores actividades para passarem a viver exclusivamente da escrita.
De estranhar seria que o passado humano não fosse fonte inspiradora de inúmeros autores e de deleite de ainda mais leitores, pois na História encontram-se factos, situações e cenários que podem ultrapassar qualquer ficção. A ficção tradicional já quebrou todos os dogmas formais e todos os tabus políticos, sociais, religiosos e morais, tornando-se-lhe cada vez mais difícil encontrar temáticas novas que mexam com as emoções das pessoas. Por outro lado a História, por ser real, ainda vai conseguindo mexer com essas emoções; dramatizando situações históricas facilita-se a identificação do leitor com a narrativa, cativando-o com enredos que, muito provavelmente, não resultariam se se tratasse de ficção pura.
Independentemente das razões que levam ao sucesso do romance histórico este pode cumprir todas as funções úteis (e inúteis) da literatura tradicional. Aliás, as gradações existentes entre os dois tipos são tantas e tão subtis que se torna cada vez mais difícil proceder à classificação em géneros ou em subgéneros. Mas tal também é irrelevante, devendo bastar, sem preconceitos, a avaliação subjectiva de boa ou má literatura e a classificação objectiva entre História e ficção.
Não deve haver historiador que na sua juventude não tenha lido Walter Scott, Alexandre Dumas ou Emilio Salgari, assim como não deverá haver físico que não tenha lido Ray Bradbury, Robert A. Heinlein ou Arthur C. Clark. Provavelmente tanto o historiador como o físico leram-nos a todos e, dum qualquer modo, acabaram por ser marcados por essas leituras. Alexandre Herculano ou de Isaac Asimov, como muitos outros ficcionistas, até eram respeitáveis cientistas e, por ventura, atingiram mais público no exercício da primeira função do que no da segunda. Assim sendo, ao involuntariamente estimular jovens a tornarem-se cientistas, a ficção terá contribuído para o progresso da Ciência, da mesma maneira que poderá contribuir para que o grande público possa interessar-se por ela.
O romance histórico é muito mais popular que a historiografia porque enquanto ao primeiro género é legítimo o recurso a todos os artifícios literários, ao segundo esses são-lhe vedados por ser fortemente condicionado pela metodologia convencionada pela comunidade científica que o irá validar ou não (e não vale a pena entrar aqui na discussão de ser a História uma ciência ou uma arte). Enquanto o escritor tem toda a liberdade para preencher as lacunas que existam nos dados históricos fazendo uso da sua imaginação criadora, o historiador, perante o mesmo problema, fica limitado a conjecturas e hipóteses que têm de se enquadrar num quadro de possibilidades epocais, além de ter de as assinalar devidamente como tal. Assim, as peripécias colombinas secamente narradas por Garcia de Resende e Rui Pina – mesmo que contadas por outrem que os use como base conjuntamente com as outras fontes conhecidas – não têm qualquer possibilidade de competir no mercado editorial de massas com a pseudo-história do mesmo almirante escrita por Mascarenhas Barreto ou o romance de Rodrigues dos Santos e muito menos com as intrigas, de outra ordem, integralmente ficcionadas por John le Carré ou Michael Crichton.
Enquanto que o trabalho do historiador é o resultado de 90% de transpiração e 10% de inspiração, o trabalho do escritor deverá obedecer à relação inversa. Também o reconhecimento do mérito pelo grande público é repartido de forma desigual e em benefício do escritor, já que a necessidade de rigor que o texto historiográfico deve ter retira-lhe todo o brilho artístico, o que aliado ao facto de a maioria dos historiadores não ficar a dever muito às musas da escrita torna pouco apetecível e pouco comerciável os seus escritos.
A estas duas literaturas juntou-se uma outra, a pseudo-história. Esta é um género bastardo – misto de história e ficção – que se quer fazer passar por História e recusa terminantemente que se lhe chame ficção.
Não sendo um género novo, pois sempre existiu vindo a público em edições de autor ou dados à estampa em pequenas casas da especialidade marginais ao sistema editorial dominante, ganhou nos últimos anos grande pujança ao encontrar na Internet um meio de divulgação barato e de grande alcance. O sucesso no mundo virtual, medido pela quantidade e reacções das assistências, acabou por atrair a atenção das editoras tradicionais que viram nesse género mais uma possibilidade de fazer dinheiro desde que se disponibilizassem a investir na produção de campanhas de publicidade de boa envergadura – conferências, entrevistas em todos os media e, claro, anúncios.
Obviamente, como referido, quem produz pseudo-história não admite estar a fazer algo de pseudo, de falso. Quando muito admitirá estar a fazer história alternativa. Mas isso é o mesmo que dizer ser possível fazer ciência alternativa – como se a maçã que, neste Universo, cai da árvore pudesse em alternativa subir da árvore.
Quem produz este tipo de escrita invocará que em História os mesmos factos são passíveis de interpretações diversas dependendo de quem as faz e que isso, à luz dos métodos historiográficos, não retira mérito ao historiador nem desacredita as conclusões – outros poderão até ver nisso a impossibilidade de a História se constituir como uma ciência.
No entanto a pseudo-história – mais difícil de definir que a pseudociência já que o método da segunda é mais exigente do que o da primeira – é assim definida não porque perante os mesmos dados chega a conclusões diferentes, mas porque falsifica, deturpa e omite factos relevantes para servirem interesses, por vezes tenebrosos, de pessoas ou de grupos que nada têm a ver com a História enquanto tentativa honesta de conhecimento do passado humano.
A pseudo-história baseia-se em teorias da conspiração; parte de pressupostos falsos – a que nem se podem chamar de hipóteses – e estes pressupostos acabam por ser as conclusões; assenta em documentos únicos, descontextualizados, secundários, falsos; é dogmática; não é autocrítica nem se submete à crítica, tomando-a como detractora despeitada. A lista de características é longa e poderia continuar mas em tudo seria diferente daquilo que deve ser a História.
Aos indivíduos de hoje exige-se no dia-a-dia profissional uma racionalidade e competência técnica extremas. Os indivíduos especializam-se de tal maneira que muito pouca disponibilidade lhes fica para poderem dominar outras matérias para além da superfície e da banalidade. Vivem numa sociedade onde existem breves momentos ou curtos espaços informativos, nos quais confiam, entremeados entre grossas fatias de entretenimento mentalmente debilitante, quando não boçal. Quase como um contraponto às exigências profissionais, alguns desses mesmos indivíduos, tendem a afrouxar a racionalidade que possuem – como que se o baixar dessas guardas constituísse uma forma de descanso – e passam a confiar na informação que assim embrulhada lhes é fornecida.
O erro de quem confia acriticamente na informação que lhe é dada reside no facto de pressupor que quem a produz está a agir com a competência técnica e a racionalidade que é exigida a quem a recebe quando está no exercício da sua actividade profissional. Mas nem sempre é assim. Quem fornece informação pode errar, de boa ou de má-fé, pelas razões mais diversas, sendo uma delas o interesse económico, se outro ainda mais obscuro não houver. Ora, é precisamente por não se querer cair neste tipo de erro de credulidade que se cai no oposto, que se cai na pseudociência, na pseudo-história. A popularidade da pseudociência e da pseudo-história passa então a dever-se ao inconformismo, à recusa da normalização e da massificação ou, mais grave ainda, da vontade de negação da realidade tal como ela é entendida ou explicada.
Quando produtores de informação ou entidades respeitáveis, e como tais tidos por credíveis, por lapso ou não, veiculam, acabando por publicitar, teses pseudo-históricas sem as devidas ressalvas, estão a contribuir para a sua difusão, legitimação e perpetuação das mesmas. Não se trata de censura nem de cercear a liberdade de expressão. Trata-se tão só de advertir os menos informados de que se trata de matéria contestada ou contestável pela comunidade científica por ir ao arrepio da prática estabelecida e tida como boa. Afinal, sem limitar a liberdade de expressão, já existem mecanismos de advertência prévia do eventual público de espectáculos e actividades que podem ferir susceptibilidades.
Ao abrigo da liberdade de expressão a pseudo-história tem todo o direito de existir mesmo apresentando os maiores dislates como o da negação do Shoah, que Colombo era agente secreto ou que os chineses descobriram os Açores. Contudo, também ao abrigo da liberdade de expressão, tem que estar disponível para a crítica, o que pode ser um exercício quase inútil já que os seus produtores, dogmáticos, nunca a reconhecem e os incautos que tomaram esses disparates como certos ou não têm acesso à crítica – porque nunca recebe a mesma atenção dos media – ou então tornam-se eles mesmos coniventes com a fraude.
À referida quase inutilidade da crítica juntam-se as dificuldades em fazê-la bem feita. É que nem sempre há tempo, paciência ou o incentivo para a fazer. O primeiro obstáculo a passar é a verborreia pseudo-histórica destinada a cobrir com uma cortina de fumo o pequeno conjunto de ideias em que consiste a tese. Depois há que procurar na enxurrada de factos que sempre se apresentam os que realmente contribuem (ou poderiam contribuir) para a tese, separando-os daqueles que são meramente decorativos e que pretendem demonstrar a profundidade e vastidão do trabalho. Neste processo pode-se logo ir assinalando os falsos, os deturpados e os descontextualizados para no fim acrescentar os que aí faltam e não deveriam faltar. Estando-se perante pseudo-história o processo poderia acabar aqui, pois as falhas já encontradas seriam suficientes para o parar, no entanto, se o crítico for persistente ou se estiver a cumprir alguma penitência poderá continuar e ver se os factos que sobram (e os que faltam) permitem sustentar a tese. Por ventura, os factos apresentados são tão díspares entre si ou as conclusões parcelares tão (pseudo)técnicas que o crítico tem de recorrer a especialistas dessas áreas (se os houver) para obter um parecer competente, quando não é a totalidade dos factos e conclusões apresentados no trabalho a precisar críticas especializadas. Ao contrário da pseudo-história que é vendida ao grande público, o trabalho dos críticos não é remunerado, pelo que não pode ser feito como poderia ser, mas também – muitos dirão – não deverá valer a pena fazê-la.
A História, é por definição séria. Trata-se dum inquérito metódico e sujeito a crítica constante que pode prolongar-se por séculos. Nela o erro é sempre passível de correcção. O erro é admissível e até mesmo aceitável se for resultado de boa-fé ou de limitações intelectuais (há historiadores mais inteligentes que outros) ou materiais (impossibilidade de aceder a uma fonte determinante). A História é um conhecimento que se vai construindo geração após geração, sem pretensões à verdade absoluta e com disponibilidade para aceitar a novidade fundamentada que eventualmente vá aparecendo. Todo o historiador sonha em dar um contributo notável para o avanço significativo da História. A maior parte deles ficará sem satisfazer esse desejo, não porque tema o ridículo de expor uma nova teoria que vá contra a norma existente e que lhe garantiria um lugar na História da Historiografia, mas porque é honesto e as hipóteses revolucionárias ou situacionistas que vai formulando acabam por não ter fundamentação, não saindo por isso donde nunca deveriam sair – da gaveta.
Dan Brown (O Código Da Vinci), Miguel Sousa Tavares (Equador) ou José Rodrigues dos Santos (Codex 632) escrevem literatura (romances históricos) e, aparentemente, não a pretendem vender como História – não querem vender gato por lebre – se bem que para muitos dos seus leitores as realidades que romanceiam passem a ser a realidade histórica. Como tudo e como todos, alguns destes autores ou as suas obras poder-se-ão tornar históricos, algo que só a própria História poderá vir a determinar e não a vontade presente de algum publicitário ou bajulador. As polémicas em que se possam ver envolvidos ou em que voluntariamente se envolvam poder-se-ão, ou não, tornar históricas ou objectos da História. Seja como for, o valor histórico será determinado pelos historiadores futuros.
Gavin Menzies (1421: o ano em que a China descobriu o mundo), Mascarenhas Barreto (O Português Cristóvão Colombo Agente Secreto do Rei D. João II) ou Luciano da Silva – não confundir com Luciano Pereira da Silva, 1864-1926 – [Cristóvão Colon (Colombo) era Português], fazem pseudo-história, pois pretendem vender as suas ideias (e as alheias, no que não ficam sozinhos) como sendo História; fazem maus romances históricos já que lhes falta a dinâmica narrativa que os anteriores têm. No entanto têm o desplante de querem passar um atestado de incompetência a toda a comunidade científica, passada e presente. E nisto as editoras são cúmplices, senão mesmo co-responsáveis por um logro – tal como o talhante que vende gato em vez de lebre.
Este texto foi escrito no Verão de 2006 e publicado em Setembro do mesmo ano na página da Internet da APH. Foi redigido a pedido de um dos responsáveis da associação, numa altura em que desconhecia a polémica que já existia há muito tempo no fórum do Geneall e antes de tomar conhecimento das adulterações que ocorriam na Wikipédia que originaram o aparecimento desta página. Por a página da APH ter sido reformada e os artigos de opinião estarem agora indisponíveis e por este artigo manter toda a actualidade, republica-se aqui o texto acima.